Nas últimas semanas, a compra de vacinas contra o coronavírus se tornou o principal ponto de tensão entre governadores de Estados e o Palácio do Planalto.
Por BBC News
No começo da semana, o governo de São Paulo anunciou que iniciaria a vacinação da população contra o novo coronavírus em 25 de janeiro — o anúncio foi feito antes mesmo de o governo federal lançar a versão final do seu plano de imunizações.
Em resposta, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República (Secom) publicou nota afirmando ser “populismo barato e irresponsável” anunciar a vacinação antes do imunizante ser liberado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) — a vacina CoronaVac, desenvolvida pelo Instituto Butantan, ligado ao governo paulista, ainda não obteve o registro da agência.
Na manhã desta terça-feira (08), o governador tucano de São Paulo, João Doria, e o ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, trocaram altercações durante uma reunião entre governadores e o ministro para tratar do processo de compra de vacinas contra a Covid-19.
“O que difere privilegiar duas vacinas em detrimento de outra?”, perguntou Doria. “É uma questão ideológica, política ou falta de interesse em disponibilizar mais vacinas?”, criticou ele, acusando o governo federal de não ter investido na vacina do Instituto Butantan por causa de um preconceito do presidente Jair Bolsonaro.
Em outubro, Bolsonaro disse que não compraria a vacina do Butantan por ser ela desenvolvida em parceria com o laboratório chinês Sinovac.
“A da China nós não compraremos, é decisão minha. Eu não acredito que ela transmita segurança suficiente para a população”, disse o presidente — semanas mais tarde, Bolsonaro recuou e disse que o governo federal poderia sim comprar a vacina CoronaVac, caso ela se mostre segura.
Após a reunião com Pazuello, outros governadores também emitiram opiniões sobre o assunto.
O governador de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), disse que “não terá nenhuma campanha de imunização praticada por qualquer governador”, e que a imunização será feita nacionalmente, pelo Ministério da Saúde.
O governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), foi pelo mesmo caminho e disse que os chefes dos Estados pediram ao Ministério da Saúde que lidere o processo de compra das vacinas.
“No momento em que tiver uma vacina liberada pela Anvisa, que ela possa chegar de maneira igual para todos os brasileiros, de acordo com a estratégia de grupos prioritários, mas que nenhum brasileiro fique sem a igualdade na oportunidade de estar se vacinando”, disse ele a jornalistas após a reunião.
Afinal, quem é responsável pela vacinação dos brasileiros? Os Estados podem distribuir uma vacina que ainda não foi liberada pela Anvisa?
A reportagem da BBC News Brasil conversou com especialistas para responder às principais perguntas sobre o assunto.
Quem é responsável pela vacinação dos brasileiros? Estados ou o governo federal?
Na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), as responsabilidades são compartilhadas entre a União, os Estados e os municípios. O hospital de uma universidade federal, por exemplo, é mantido com dinheiro federal, enquanto o posto de saúde do bairro é bancado com recursos municipais.
No caso das vacinas, porém, a responsabilidade é da União.
O Brasil conta com um Programa Nacional de Imunizações, criado ainda antes do SUS, em 1975, e cuja responsabilidade é do governo federal. A compra e a distribuição de vacinas são de responsabilidade do governo federal, diz Florentino Leônidas, sanitarista pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em políticas públicas pelo Insper (SP).
Na prática, porém, órgãos estaduais acabam participando do processo: o Instituto Butantan, que pertence ao governo do Estado de São Paulo, por exemplo, é responsável pela produção de uma parte significativa das vacinas que são distribuídas pelo Programa Nacional de Imunizações.
“Metade das vacinas que o governo federal compra são produzidas pelo Butantan. Isso já existe. As vacinas que o governo federal distribui para outros Estados são produzidas por alguns poucos centros: Manguinhos (ligado à Fiocruz), Butantan, e poucos outros”, diz Daniel Dourado, que é médico pela UnB e advogado pela Universidade de São Paulo (USP).
“Se acontecer (a inclusão da CoronaVac no Programa Nacional de Imunizações), o Estado de São Paulo, que é o controlador do Butantan, vai dizer ‘olha, eu preciso de recursos federais para produzir mais doses'”, diz Dourado — ele se especializou em direito sanitário e políticas públicas de saúde.
Sozinho, o governo de São Paulo não terá condições de vacinar toda a população, diz Florentino Leônidas. Historicamente, o Brasil tem tido sucesso nas campanhas de vacinação ao coordenar esforços entre União, Estados e municípios, diz ele.
“O Brasil tem um dos mais importantes programas de imunização do planeta. Temos mostrado, ano após ano, que o caminho é uma atuação com coordenação nacional e pautada em um compromisso dos gestores de todos os entes federados”, diz ele.
“Campanhas estaduais de vacinação serão insuficientes, acentuarão desigualdades e potencializarão a descoordenação existente em relação à Pandemia da Covid-19. Precisamos de financiamento federal para ter vacina para todos, logística adequada e os insumos necessários”, diz Florentino Leônidas.
Um Estado pode restringir a vacinação aos seus próprios moradores?
A resposta curta é: não.
“Se o cidadão quiser se deslocar até São Paulo para tomar vacina, nada o impede”, diz Daniel Dourado.
O que já existiu em outras campanhas de vacinação no passado, diz Daniel Dourado, é a exigência de que a pessoa procure o posto de saúde mais próximo de sua casa, para fins de organização logística.
“O programa de vacinação pode incluir uma referência residencial. Que é assim: você só pode se vacinar no posto de saúde que for referência para a sua área. Mesmo sem ser cadastrado no programa de Saúde da Família, você tem que ir na UBS que fica na área da sua residência. Numa das campanhas de gripe, teve algo parecido. Então o que pode acontecer, eventualmente, é isso”, diz Dourado
“Mas legalmente você não pode impedir alguém de ir lá tomar a vacina”, diz Dourado.
Independentemente da compra pelo governo federal, o governo de São Paulo já disse que disponibilizará 4 milhões das 46 milhões de doses da CoronaVac para outros Estados — a ideia é que as doses sejam distribuídas para profissionais de saúde.
De acordo com o governador paulista João Doria, 11 Estados já mostraram interesse em adquirir as doses: Acre, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Pará, Piauí, Paraíba, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e Roraima.
A vacina pode ser distribuída sem autorização da Anvisa?
Normalmente, não. Mas, com a pandemia da covid-19, foram criadas exceções: uma vacina poderá ser liberada para uso no Brasil em até 72 horas, desde que seja aprovada por agências de vigilância sanitária no exterior.
“A vacina, ou um medicamento qualquer, para ser liberado, em regra, precisa do registro da Anvisa. Só que ‘registro’, neste contexto, não é um nome genérico. É um procedimento administrativo específico, e que demora meses, geralmente”, diz Daniel Dourado.
Agora, o que se discute é a liberação das vacinas para uso antes da obtenção do registro.
“O Congresso aprovou a lei da Covid, que incluiu uma autorização excepcional (para a vacinação antes do registro da Anvisa). (…) Essa autorização, quando sair, vai ser para o país inteiro. Então, quando vier a vacina autorizada pela Anvisa, ela vai ser para o país todo”, diz Daniel.
Apesar da aprovação da lei, ainda há controvérsia sobre o tema — tanto que dois deputados de oposição, Arlindo Chinaglia (PT-SP) e Nilto Tatto (PT-SP), apresentaram um projeto de lei para garantir o uso de vacinas antes da aprovação da Anvisa, desde que o imunizante tenha sido liberado por agências internacionais.
Florentino Leônidas lembra que, em decisões recentes, o Supremo Tribunal Federal (STF) vem obrigando o governo federal a adquirir medicamentos de alto custo que não são disponibilizados pelo SUS — e, em alguns casos, as medicações são liberadas mesmo sem o aval da Anvisa, desde que estejam registradas em agências estrangeiras.
“A ‘lei da Covid’ obriga a Anvisa a realizar a autorização emergencial de qualquer vacina aprovada pelas agências de regulação japonesa, europeia, americana ou chinesa. E, em caso de não manifestação da Anvisa, em 72 horas estas vacinas seriam automaticamente aprovadas”, diz Florentino.
Além disso, a própria Anvisa já publicou duas resoluções com as regras para permitir o uso emergencial de vacinas. A última destas resoluções foi publicada nesta quinta-feira (10).
A vacinação corre o risco de ser judicializada?
Sim. Na verdade, já existem processos tramitando no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o assunto — o que não impede que haja uma nova onda de casos judiciais, no futuro.
Na próxima quarta-feira (16), o Supremo vai julgar duas ações Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIn) apresentadas por partidos políticos sobre a obrigatoriedade da vacinação. De um lado, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) argumenta que Estados e municípios devem ter o poder de impor a vacinação aos residentes; enquanto o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) defende a tese oposta.
Ambas são relatadas pelo ministro Ricardo Lewandowski, e devem ser julgadas juntas.
No mesmo dia, também está em pauta uma outra ação sobre vacinação obrigatória, que discute se pais podem deixar de vacinar os filhos de menos de 18 anos em função de crença religiosa ou convicção filosófica.
No dia 17 de dezembro, outro julgamento sobre o assunto: o tribunal deve decidir sobre duas ações que visam obrigar o governo federal a comprar a CoronaVac.
Neste caso, são duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs), apresentadas por partidos de oposição como PT, PSOL, PC do B, PSB e Rede Sustentabilidade.
Os partidos também pedem que o STF impeça o governo de “dificultar” a pesquisa, o registro e a liberação das vacinas.
Além destas ações já apresentadas pelos partidos políticos, a Justiça pode acabar abarrotada com processos apresentados por cidadãos tentando obter acesso aos imunizantes — de forma parecida ao que já acontece hoje com medicamentos de alto custo, diz Florentino Leônidas.
“Poderemos ter uma enxurrada de ações judiciais por vacinas, a saúde já vem historicamente sendo judicializada, principalmente diante do seu histórico subfinanciamento. Então teremos diversos pedidos dos mais diferentes atores: usuários de modo individual, ações públicas, Estados, municípios”, diz ele.
“Acredito que no STF pode parar algumas questões: a omissão do governo federal na oferta de vacinas; a ausência de vacinas em quantidade suficiente; o financiamento do SUS em 2021; potenciais critérios de priorização; conflitos entre entes da federação e a obrigatoriedade da vacina”, diz.