Ao longo da pandemia de Covid-19, ambas divergiram em relação ao tratamento precoce com medicamentos sem eficácia para a Covid.
Por Folhapress
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A regulamentação da telemedicina, que hoje funciona em caráter provisório, tem provocado novo embate na classe médica opondo, mais uma vez, duas das principais entidades da categoria no país, o CFM (Conselho Federal de Medicina) e a AMB (Associação Médica Brasileira).
Ao longo da pandemia de Covid-19, ambas divergiram em relação ao tratamento precoce com medicamentos sem eficácia para a Covid. A AMB foi contra o uso, e o CFM deixou a critério dos médicos.
Agora, as divergências dizem respeito a uma questão central discutida tanto na elaboração de uma nova resolução do CFM sobre telemedicina quanto em projetos de lei na Câmara dos Deputados sobre o tema: a obrigatoriedade de que a primeira consulta seja presencial.
Em debates virtuais sobre o assunto, o vice-presidente do CFM, Donizette Giamberardino Filho, tem defendido que a primeira consulta por telemedicina seja presencial. Em nota à Folha, porém, a entidade disse que ainda analisa o assunto. Já AMB entende que essa decisão deve ser do médico e do paciente.
Há discussões também em torno da chamada territorialidade. Médicos poderiam fazer telemedicina em todo o país ou apenas nos estados onde possuam registro profissional? Hoje, além do certificado no estado onde atua predominantemente, o médico pode ter outros em locais onde também atende.
A questão é que agora, com a telemedicina, ele pode atender, em tese, pacientes em qualquer lugar do país. A AMB defende que o profissional tenha autonomia para isso.
Giamberadino Filho, do CFM, tem opinado que se a primeira consulta for presencial, o acompanhamento depois poderia ser virtual, em qualquer lugar. Em nota, o CFM diz que ainda estuda o assunto.
“Essas ferramentas [de telemedicina] existem para beneficiar o paciente. Ainda temos limitações. Há situações em que eu, como médico, não vou conseguir resolver tudo [virtualmente]. Vou precisar do paciente presencialmente”, afirma o ginecologista César Fernandes, presidente da AMB.
Segundo ele, é o médico que, na primeira consulta virtual, deve arbitrar se vai precisar ou não de uma consulta presencial. “É decisão do médico, autonomia do médico. Se ele se aventurar a fazer uma proposição terapêutica sem ter todos os elementos necessários, ele será responsabilizado por isso. Não atenua a responsabilidade do médico se ele atender presencialmente ou por teleconsulta.”
Pesquisa feita pela AMB com uma amostra de 980 médicos mostra que 66% consideram que o profissional deve ter autonomia para decidir pela consulta virtual ou não e 62% dizem que ela não deve se restringir ao estado onde o médico tenha registro profissional.
Para Fernandes, o fato de parte da categoria defender que a telemedicina só seja exercida no estado de registro pode ser pelo fato de que há médicos em locais que não têm recursos tecnológicos para concorrer em condições iguais com outros de centros mais avançados.
“Talvez imaginem que vão ter prejuízo. Mas é um direito do paciente de querer passar onde quiser e com quem quiser. Senão daqui a pouco o médico vai ter que ter 27 CRMs para poder atender por telemedicina no país?”, questiona.
O pediatra Clóvis Constantino, professor de ética médica e bioética da Unisa (Universidade Santo Amaro), lembra que uma questão que precisa ficar clara é que, para algumas especialidades médicas, a telemedicina funciona muito bem, mas para outras, não.
Ele sugeriu ao CFM que as 54 especialidades aprovassem a forma como a telemedicina poderia ser usada (ou não) em suas respectivas áreas. “Na psiquiatria, por exemplo, há mais segurança [de uma primeira consulta virtual]. Mas, em outras, o exame físico é muito importante.”
Sob uma legislação provisória aprovada no início da pandemia e com validade até o fim da crise sanitária, a telemedicina já está sendo amplamente usada tanto em plataformas estruturadas, que obedecem a regras de sigilo e proteção de dados, quanto por meios informais, como aplicativos de mensagens.
Segundo dados da Saúde Digital Brasil, uma associação que representa os principais operadores de telemedicina do país, em 2020 e 2021, mais de 7,5 milhões de atendimentos virtuais foram feitos por mais de 52,2 mil médicos. A maioria (87%) foi das chamadas primeiras consultas.
Para Eduardo Cordioli, presidente da entidade, mais importante do que o volume dos atendimentos a distância é o alto índice de resolutividade: 91% nas consultas avulsas de pronto-atendimento.
Na pesquisa da AMB, 56% dos médicos dizem que já estão atendendo a distância e 59% pretendem continuar após a pandemia. Uma outra pesquisa, da FenaSaúde (Federação Nacional de Saúde Suplementar), também mostra ampla utilização da telemedicina pelas empresas de assistência médica e odontológica.
Em debate virtual recente promovido pela Anahp (Associação Nacional dos Hospitais Privados), um dos pontos abordados foi a sobre a Lei Geral de Proteção de Dados, que deverá ser seguida à risca pelos profissionais que fazem consultas virtuais.
“É muito importante estabelecer regras, princípios éticos para que essa implantação seja dentro do que imaginamos como adequada”, disse Giovanni Cerri, presidente do conselho do Instituto de Radiologia do HC da USP.
“É preciso entender que consulta por WhatsApp não é telemedicina”, disse Giamberardino, do CFM. Ele afirmou que o conselho estuda formas de proporcionar aos médicos meios de prescrição e assinatura digital seguros, já inclusos na mensalidade.
Outra questão é a capacitação dos médicos. Segundo Chao Lung Wen, chefe da disciplina de telemedicina da USP, apenas 12 das 340 universidades com curso de medicina no Brasil possuem aulas voltadas para a telemedicina.
Uma preocupação levantada pelos participantes é que a modalidade não deve ser usada pelos gestores públicos e privados de saúde como forma de reduzir custos.
Para os locais remotos, ele defende uma combinação de unidades móveis de deslocamento e telemedicina. Nessas regiões distantes, em que não há médico, Giamberardino diz que a primeira consulta poderia ser virtual. “Mas deve ser a exceção, não a regra.”
Em nota à Folha, o CFM disse que questões como a exigência de uma primeira consulta presencial (ou não) ou a definição de territorialidade “estão sendo avaliados, com rigor e critério, a partir de considerações feitas por todos os setores envolvidos.”
O órgão destaca que tem procurado ouvir os conselhos regionais de medicina, as sociedades médicas e especialistas renomados para construir um normativo que atenda aos interesses dos pacientes e dos profissionais. Sugestões encaminhadas por meio de consulta pública também estão sendo analisadas, diz o CFM.
“É preciso lembrar que a telemedicina não vem para substituir a presença do médico, mas para melhorar a qualidade do serviço prestado, bem como o seu acesso. Entre os princípios abordados na revisão está a autonomia do médico e do paciente. A valorização dessa relação é fundamental para o estabelecimento da confiança interpessoal”, diz o conselho.
O CFM entende que todo ato médico deve ser registrado em prontuário do paciente, para conferir mais segurança na assistência prestada.