Itália se divide sobre chance de ouro para aprovar projeto anti-homofobia

Depois de 25 anos de tentativas, o país tem a sua chance mais concreta de aprovar uma lei que criminaliza atos violentos e discriminatórios contra pessoas LGBTI

Manifestante na parada de Roma, na tarde de sábado (26). AFP/Tiziana Fabi

Por Folhapress

MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Se o Vaticano e a megainfluencer Chiara Ferragni se posicionam, declaradamente, em lados opostos de um mesmo debate, junto com todo o espectro político e grande parte da opinião pública, é sinal de que o assunto é quente na Itália. E, na próxima semana, a temperatura tem tudo para subir ainda mais.

Depois de 25 anos de tentativas, o país tem a sua chance mais concreta de aprovar uma lei que criminaliza atos violentos e discriminatórios contra pessoas LGBTI (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e intersexuais).

Entre os 27 integrantes da União Europeia, os italianos estão entre as cinco nações que não possuem nenhum tipo de censura contra crimes e discursos de ódio contra a minoria, ao lado de Letônia, Polônia, República Tcheca e Bulgária. No Brasil, na ausência de uma lei anti-homotransfobia, o STF permitiu, em 2019, a criminalização de atos preconceituosos desse tipo.

A situação da Itália pode mudar a partir de terça (13), quando o Senado inicia o processo de apreciação e votação de um projeto que reúne medidas de combate e prevenção da discriminação e da violência por motivo de sexo, gênero, orientação sexual, identidade de gênero e deficiência.

“É a primeira vez que uma lei do tipo consegue chegar para ser discutida nas duas Casas do Parlamento”, diz a advogada Francesca Rupalti, vice-presidente da Rede Lenford, especializada em direitos LGBTI. Em 2013, uma outra proposta de lei foi aprovada na Câmara dos Deputados, mas, nos anos seguintes, ficou travada no Senado, sem jamais entrar na pauta.

O atual projeto nasceu há cerca de um ano, a partir da junção de cinco propostas –durante a qual foram incluídas mulheres e portadores de deficiência–, e foi aprovado em novembro de 2020 na Câmara, por 265 votos a favor e 193 contrários. Na imprensa italiana, ele é chamado de “DDL Zan”, abreviação de “disegno di legge” (projeto de lei) e leva o sobrenome de seu relator, o deputado de centro-esquerda Alessandro Zan (Partido Democrático).

Depois de tramitar por sete meses na Comissão de Justiça do Senado, em meio a ações de obstrução das legendas de centro-direita, chega de forma inédita ao plenário. São dez artigos que atualizam o Código Penal e a Lei Mancino, de 1993, contra crimes de ódio e incitação ao ódio por motivos raciais, étnicos, religiosos ou por nacionalidade.

As penas vão de prisão de até 18 meses e multa de 6.000 euros (R$ 37,4 mil) para quem incita ou comete atos de discriminação e de até quatro anos para atos de violência.

O texto também cria mecanismos educativos pró-tolerância e institui a realização de pesquisas estatísticas sobre violência e discriminação que incluam os grupos LGBTI. São apenas nove páginas, mas que ocuparam, nas últimas semanas, o centro do debate político e cultural na Itália.

O projeto de lei tem sido duramente criticado pelos partidos de centro-direita e pela Igreja Católica, historicamente contrários a certos aspectos da proposta. O alvo são três trechos, especialmente.

O artigo 1, por incluir a expressão “identidade de gênero” entre as definições de pessoas que passariam a ser protegidas pela lei. Segundo o texto, o termo se refere à “identificação percebida e manifestada de si próprio em relação ao gênero, mesmo se não correspondente ao sexo, independemente de haver concluído o percurso de transição”.

O artigo 4, entendido como um salva-conduto impreciso sobre liberdade de expressão, aquilo que poderia ser punido ou não. E o sétimo, que prevê a criação do Dia Nacional contra a Homofobia, Lesbofobia, Bifobia e Transfobia, em 17 de maio, com atividades que promovem a “cultura do respeito e da inclusão” e o combate à discriminação e à violência, inclusive nas escolas.

Embora o tema tenha sempre frequentado o noticiário nos últimos meses, o clima esquentou de vez no dia 22 de junho, quando o Corriere della Sera publicou um pedido do Vaticano, feito por vias diplomáticas, para que houvesse uma revisão de trechos do projeto. Segundo especialistas, trata-se de algo sem precedentes nas relações entre a Itália e a Santa Sé.

Segundo o documento, o projeto deixa brechas para que a liberdade da igreja seja reduzida. Há o temor de que sacerdotes possam ser punidos caso se manifestem contra o casamento gay, por exemplo, e de que escolas católicas sejam obrigadas a incluir no calendário o dia contra a discriminação.

O governo italiano respondeu de forma incisiva. “Não quero entrar no mérito da questão, mas a Itália é um Estado laico. O Parlamento é livre para discutir”, afirmou o primeiro-ministro Mario Draghi, que é católico praticante.

Já os políticos à direita aproveitaram para subir o tom. “Aceitemos o convite da Santa Sé para elaborar um texto que aumente as penas a quem discrimine dois rapazes que se amam. Mas tiremos a ideologia, o envolvimento das crianças e o ataque à liberdade de expressão”, disse o senador Matteo Salvini (Liga).

Os principais movimentos LGBTI da Itália são contra as mudanças, alegando que o debate já foi realizado na Câmara. Além disso, temem que o projeto possa nunca acabar em votação, já que, se alterado, teria que voltar à Câmara, com o risco de não mais tramitar antes do fim da atual legislatura, até 2023.

“Todas as vezes em que houve a tentativa de aprovação de uma lei desse tipo, o embate sempre esteve ligado à liberdade de opinião. E um dos protagonistas mais importantes nesse ponto é a Igreja Católica, por temer que a lei venha a significar uma mordaça”, diz Gabriele Piazzoni, secretário-geral da Arcigay, principal associação LGBTI da Itália. “Mas isso não tem nada a ver. A lei, como está escrita, intervém exclusivamente em casos explícitos de violência ou discriminação. Um padre será sempre livre para dizer que, para ele, a família é somente aquela do casamento entre homem e mulher.”

Na última semana, o debate teve outro elemento inflamável. O senador Matteo Renzi (Itália Viva), de centro, surpreendeu ao anunciar que trabalhava com a centro-direita por mudanças na lei, a mesma que o seu partido ajudou a aprovar na Câmara. Nos bastidores, comenta-se que a proposta é usada como moeda de troca para outros temas legislativos, como a eleição à Presidência da República, prevista para 2022. A escolha do chefe de Estado –atualmente, Sergio Mattarella– é feita pelo Parlamento.

Criado em 2019, o partido de Renzi é pequeno, mas detém 17 votos no Senado, suficientes para definir o futuro da Lei Zan –foi jogando assim que ele ajudou a afundar o governo do ex-premiê Giuseppe Conte, em janeiro. Para passar no plenário, o projeto precisa ser aprovado por maioria absoluta, com 161 votos.

Para Rupalti, da Rede Lenford, outra peculiaridade ajuda a explicar o fato de o país não ter até hoje uma lei anti-homofobia –a crise histórica que afeta a política italiana.

“Tem uma fraqueza da política, na qual as maiorias que apoiam os governos, nos últimos anos, sustentam-se sobre números muito pequenos. Poucos votos podem determinar a aprovação ou não de algo. E, assim, até forças pequenas, como o Itália Viva, têm determinado as escolhas do Parlamento.”

A atuação de Renzi, ex-premiê (2014-2016), acabou por tumultuar ainda mais o debate sobre a Lei Zan. De Milão, a empresária Chiara Ferragni, considerada uma das mulheres mais influentes do país, chamou o político de “nojento” para os seus 24 milhões de seguidores no Instagram, alimentando um bate-boca generalizado entre políticos e famosos nas redes sociais. “A Itália é o país mais transfóbico da Europa. E o Itália Viva, junto com Salvini, acha que pode brincar com isso”, escreveu Ferragni.

Segundo o instituto Piepoli, no fim de maio 75% dos italianos eram favoráveis às medidas da Lei Zan –20%, contra; 5%, indecisos/não sabiam. Nova sondagem realizada na semana passada, porém, detectou perda de 10 pontos percentuais entre apoiadores da lei, especialmente entre eleitores de centro-direita.

Fato é que na Itália 40% das pessoas LGBTI afirmam sofrer discriminação em seus cotidianos, e 8% já sofreram violência por motivo de ódio, segundo dados de 2020 da Agência para Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA).

De acordo com levantamento da Arcigay publicado em maio, baseado apenas em casos revelados pelos jornais italianos, aconteceram 120 episódios de agressão causada por homotransfobia em 12 meses, um a cada três dias.

“A adoção da Lei Zan daria à Itália a capacidade de reconhecer preconceitos sexistas, homofóbicos e transfóbicos como causas de um crime de ódio. E emitiria uma mensagem poderosa aos agressores de que a sociedade italiana não tolerará tais crimes”, afirmou Katrin Hugendubel, diretora jurídica da Ilga-Europa, Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais.

Além disso, afirma, a lei também contribui para evitar que agentes policiais ignorem a motivação preconceituosa de crimes de ódio, o que acaba por resultar em penas mais altas para os agressores.

Diante da intensidade do debate, analistas evitam dar prognósticos sobre o desfecho da votação. Espera-se, no entanto, que a discussão avance ao menos até quinta (15), para depois ser aberta a fase de apresentação de emendas e, em seguida, começar a votação, que, a depender de pedidos que venham a ser feitos pelos senadores, pode acontecer de forma secreta, facilitando traições de todos os lados.

“Uma coisa é certa, de derrota em derrota, estamos vencendo a guerra. A Itália é um país que mudou muito, as novas gerações nem entendem por que há essa resistência em aprovar uma lei desse tipo. Se não passar agora, seria o enésimo tapa na cara de um pedaço grande deste país”, afirma Piazzoni, da Arcigay.

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