Com isso, haverá apenas um mês até que o diretor-geral da agência, Rafael Grossi, faça seu relatório sobre o caso.
Por Folhapress
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As negociações para tentar salvar o acordo nuclear iraniano só vão recomeçar em agosto, quando o novo presidente do país assume o posto, e Teerã está devendo explicações à AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) acerca de suas novas capacidades no setor.
Com isso, haverá apenas um mês até que o diretor-geral da agência, Rafael Grossi, faça seu relatório sobre o caso, que poderá levar tanto à retomada das conversas quanto a uma nova rodada de sanções contra os iranianos, além de ainda mais tensão no Golfo Pérsico.
“Tentamos iniciar uma conversa em março, mas a eleição do novo governo interrompeu o processo. Não sei se, quando recomeçarmos, será na base do que já havia ou se eles mudarão a linha. A prerrogativa é deles”, afirmou Grossi, 60, ao jornal Folha de S.Paulo.
Em visita ao Brasil, o argentino, que desde dezembro de 2019 é visto como o mais ativo dos seis diretores-gerais que a AIEA já teve em seus quase 64 anos, falou sobre o estado das complexas negociações para ressuscitar o acordo costurado em 2015.
O pacto visava impedir que o regime do aiatolás desenvolvesse a bomba, em troca do fim de sanções econômicas contra o país. Em 2018, o principal fiador do arranjo, os Estados Unidos, deixaram o acordo.
O então presidente Donald Trump era um crítico dos termos do JCPOA (sigla inglesa para Plano de Ação Conjunto Global), considerando-o uma carta-branca para que o Irã ganhasse tempo para desenvolver suas armas nucleares.
Além disso, alinhado com Israel, o americano queria a inclusão do sofisticado programa de mísseis balísticos iraniano no rol de pontos a serem controlados.
Com a volta dos democratas que patrocinaram o acordo de 2015 ao poder neste ano, a situação mudou. “Joe Biden cumpriu sua promessa”, disse Grossi em um hotel de São Paulo, na noite de sábado (17).
No caso, tentar retomar o acordo, assinado quando o atual presidente era vice. Não é fácil: apesar de o acordo ser bancado ainda por outras potências, como a União Europeia e a Rússia, os iranianos o consideram nulo sem os EUA e buscaram ampliar suas capacidades nucleares.
Outro ponto de inflexão foi o assassinato, no fim de 2020, de um de seus principais cientistas nucleares, algo atribuído a Israel. O clima é de desconfiança mútua, e a eleição do conservador linha-dura Ebrahim Raisi no mês passado sugere mais dificuldades à frente, embora Grossi não entre na seara política.
“É uma situação diferente. Há novas ultracentrífugas, maior produção de material nuclear, novas atividades com urânio metálico, o que tem um significado especial para suas possíveis utilizações”, disse Grossi, em referência ao fato de que o material pode ser usado no núcleo de uma bomba atômica.
Ele conseguiu ganhar tempo no começo do ano e logrou enviar duas equipes de inspeção para sítios nucleares iranianos. Em dois deles encontrou traços de urânio que não deveriam estar lá, além do referido urânio metálico –um disco do material está desaparecido.
“É um combo de questões, e o Irã tem de responder”, diz o diplomata. Em setembro, ele terá de fazer um relatório ao corpo dirigente da agência, que por sua vez informa a ONU (Organização das Nações Unidas), entidade à qual está subordinada.
“Estamos numa situação que não é cômoda. Já mandei mensagens informais. Mas acho que é possível achar uma solução se o Irã se comprometer”, afirma Grossi.
Segundo ele, se houver clarificação dos pontos pendentes, já haveria “um efeito muito positivo”. “Se começarem, ótimo. Até agora, nada, só algumas informações fragmentárias. Eles queria basicamente que déssemos um OK para pontos. Isso eu não vou fazer até que meus especialistas possam dizer que não há motivos para se preocupar.”
“Este é um processo com duas patas. Uma nos diz respeito, tem a ver com a parte nuclear. O que fazer com o material excedente, que pode ser enviado para outros países, ou com as novas centrífugas, que podem ser lacradas ou destruídas. Isso não é simples, mas é factível”, disse.
“Por outro lado, tem o tema político, que não tem a ver com a agência, as sanções contra o Irã. O que está pesando mais é a questão política, até onde podem ir os EUA. Nisso eu não me meto.”
A bomba iraniana é uma questão de tempo, então? “A agência não julga intenções. Temos de ver qual a situação e que não haja desvio de material nuclear ou situações proliferantes. Se não temos informações, informamos a ONU e os Estados irão decidir o que fazer. A agência não pode entrar na politização”, disse.
Ele afirma que “há essa visão de que [Raisi] é mais ortodoxo”. “Eu tenho de ter uma mente totalmente aberta e equânime, sem preconceitos. Estou esperando para me sentar com eles”, afirmou.
No Brasil desde a semana passada, Grossi participa nesta segunda (19) do evento marcando os 30 anos da Abacc (Acordo Brasil-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares), que pôs fim à competição dos dois vizinhos pela bomba.
Na linha do que havia dito à Folha de S.Paulo em entrevista em agosto passado, Grossi disse que o acordo foi muito importante, mas é preciso avançar no marco normativo de salvaguardas.
“O mundo de 2021 não é o mesmo de 1991, isso é algo óbvio. Eram países que estavam emergindo de uma situação muito iconoclasta, com pouca transparência. Foi histórico por causa disso”, diz.
“Mas era um marco bastante minimalista em termos de salvaguardas. Aí a Argentina, e depois o Brasil, assinaram o TNP [Tratado de Não-Proliferação Nuclear]. Mas ele deixava muitos espaços vazios, como aprendemos no Iraque, aí chegamos aos Protocolos Adicionais”, afirma.
Os protocolos estabelecem regimes mais detalhados de inspeções mútuas para os seus aderentes, e o Brasil até hoje não aceitou participar por temer perder poder sobre a tecnologia de suas ultracentrífugas de enriquecimento de urânio.
Com bastante jeitinho diplomático, Grossi voltou a pedir que o Brasil assine os protocolos, elaborados em 1997 e hoje com 137 países aderentes.
Dizendo que não poderia analisar a decisão política brasileira, por ser soberana, ele afirma que tanto “Brasil quanto Argentina têm de ter um esquema de salvaguardas adequado ao tamanho e à importância de seus programas nucleares, que são muito sofisticados”.
Buenos Aires aderiu aos protocolos. Mas Grossi afirma ter uma “excelente impressão” das autoridades brasileiras que visitou em termos de transparência.
“Fiz uma visita excelente ao programa de submarino nuclear da Marinha. Há um grande espírito de diálogo e de transparência. Um projeto desse pode preocupar a alguns, e a condução da Marinha e do Ministério de Minas e Energia tem a consciência de que a transparência é importante para chegar a um bom porto”, afirmou.
Nesta semana, ele ainda falará sobre o assunto com autoridades brasileiras, inclusive o chanceler Carlos França. “A agência não dita nada. Podemos evoluir através de um diálogo sistemático, sem imposições”, ressaltou.
Ele afirma que recebeu respostas para todas suas perguntas e descarta a ideia da repetição de uma crise como a dos anos 2000, quando o Brasil barrou inspetores da AIEA. “Ouvi muita coerência em todos os locais que visitei. Não é fácil encontrar isso, o setor nuclear é muito heterogêneo”, disse.
Por fim, elogiou a criação da Autoridade Nacional de Segurança Nuclear, por meio de uma medida provisória editada em maio. Ela irá assumir a função reguladora do setor, mantendo a pesquisa e a produção sob o guarda-chuva da Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear).
“A Cnen está preparada. Ter um órgão regulador verdadeiramente independente é fundamental, um país como o Brasil não poderia deixar de ter. O Brasil demorou. Na Argentina, o processo foi traumático, pois você extirpa gente, recursos e funções de uma instituição”, afirmou.