Rússia anuncia maior anexação na Europa desde a 2ª Guerra

Putin afirmou que vai anexar Donetsk, Luhansk, Zaporizhzhia e Kherson, equivalente a 15% do território da Ucrânia, na sexta-feira, 30; medida põe em risco contraofensiva ucraniana

Leonid Pasechnik, líder da autoproclamada República Popular de Luhansk, brinda enquanto fala com jornalistas após o referendo Foto: AP

Por Estadão 

MOSCOU – O presidente da Rússia, Vladimir Putin, afirmou que vai anexar formalmente, nesta sexta-feira, 30, as quatro regiões da Ucrânia que passaram por referendos considerados de fachada pelo Ocidente. É a maior absorção de território por um país da Europa desde a 2ª Guerra.

Donetsk, Luhansk, Zaporizhzhia e Kherson serão anexadas à Rússia, equivalentes a 15% do território do vizinho invadido há sete meses (uma área do tamanho de Santa Catarina).

A cerimônia ocorrerá em Moscou às 15 horas (9h em Brasília), com direito a transmissão ao vivo via telões na praça Vermelha. É a maior absorção de território por um país da Europa desde a 2ª Guerra, e a primeira no continente desde que Turquia invadiu o norte de Chipre em 1974.

Embora as votações tenham sido classificadas como “encenações” pelo Ocidente, o reconhecimento das províncias como parte do território russo amplia as possibilidades militares de Moscou na região, incluindo o uso de armas nucleares.

Assim como na anexação da Crimeia em 2014, potências internacionais não vão reconhecer a anexação. O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, afirmou que não irá cessar os combates até reaver todo seu território. Foi apoiado pelos EUA e seus aliados na Otan (aliança militar ocidental). Novas sanções contra a Rússia estão sendo preparadas.

Putin agradeceu a participação popular nas votações realizadas em Donetsk, Luhansk, Zaporizhzhia e Kherson em um pronunciamento nesta quinta-feira, 29, e disse que o Kremlin vai realizar uma cerimônia para a assinatura dos documentos para “salvar as populações dessas regiões”.

O reconhecimento das quatro províncias por Moscou coloca em xeque a contraofensiva ucraniana que começava a retomar o controle dos territórios, após meses de ocupação russa. Uma vez que o Kremlin considerar as áreas como parte do país, qualquer ação militar ucraniana passará a ser visto como um ataque à integridade territorial da Rússia, o que autorizaria as Forças Armadas do país a utilizarem seu arsenal atômico, seguindo a doutrina nuclear de Moscou.

Autoridades pró-Rússia realizaram referendos nas quatro províncias entre a sexta-feira da semana passada e a terça-feira desta semana, após as forças do Kremlin sofrerem uma série de revezes no campo de batalha que ameaçaram seu controle na região. De acordo com o resultado apresentado pelas autoridades, o “Sim” pela anexação à Rússia venceu com 97% dos votos totais.

Putin comemorou o resultado da votação em um discurso provocativo ao Ocidente, acrescentando que seu principal objetivo na guerra continua sendo “libertar” a região leste de Donbas da Ucrânia. Em contrapartida, relatos de coação durante a votação, incluindo ameaças de soldados armados com fuzis, surgiram do lado ucraniano da fronteira, reforçando as críticas do Ocidente à legitimidade do processo.

Na quarta, 28, o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, anunciou uma meta mínima para a Rússia pela primeira vez: completar a conquista de Donetsk, que tem cerca de 40% de território ainda em mãos de Kiev.

A estratégia foi comparada às votações realizadas pelos russos na Crimeia, em 2014, quando Moscou anexou a península ao território russo. O maior problema é que. no contexto atual, a Rússia não controla totalmente nenhuma das quatro regiões, militar ou politicamente. No Donbas, apesar da ocupação militar russa ser antiga, 40% do território ainda estava sob domínio de forças ucranianas.

No sul, em Zaporizhzhia e em Kherson, há uma ocupação russa forte, mas são áreas mais heterogêneas do ponto de vista linguístico e étnico do que a Crimeia e o extremo leste do Donbas, muito mais “russófonas”.

Muitos dos moradores das regiões foram deslocados pela guerra e há muitos relatos de civis sendo forçados a votar sob a mira de armas ou outras formas de coerção.

Em Kherson, autoridades montaram um palco e trouxeram cantores junto da urna de votação para estimular a participação, disse Serhi, um aposentado que vive na cidade ocupada, que pediu para não se identificar por medo de represálias. “Muito, muito poucas pessoas estavam lá e votaram”, disse ele ao The New York Times. Em outros lugares, ele disse, seus parentes foram visitados por soldados armados exigindo que eles votassem.

“É engraçado. Ninguém votou, mas os resultados estão disponíveis”, riu Lyubomir Boyko, de 43 anos, morador de Golo Pristan, uma vila na província de Kherson ocupada pela Rússia. “Eles podem anunciar o que quiserem. Ninguém votou no referendo, exceto algumas pessoas que mudaram de lado. Eles foram de casa em casa, mas ninguém saiu”, disse Boyko.

Ele, sua esposa e seus dois filhos chegaram a um centro de ajuda no estacionamento de uma loja na cidade ucraniana de Zaporizhzhia no dia anterior, depois de esperar dois dias antes que as forças russas os autorizassem abruptamente a passar pelo último posto de controle.

Relatos similares chegam de outras cidades. Em Melitopol, o prefeito Dmitro Orlov comentou as táticas de intimidação utilizadas durante a votação. “Eles batem forte na sua porta, tocam a campainha, dão uma cédula às pessoas e apontam com seus rifles onde colocar a marca”, disse.

Promessas de Moscou

Em paralelo às táticas de intimidação, forças pró-Moscou fizeram uma campanha pró-referendo em toda a extensão dos territórios que devem ser anexados, com área comparável a de Portugal. Autoridades russas se comprometeram a oferecer passaportes, pagamentos de assistência social, remédios gratuitos e contas de telefone mais baratas.

Um outdoor em Kherson mostrava uma mulher grávida com uma tradicional camisa bordada ucraniana sendo abraçada pelo marido. “Nossa prioridade é a família”, dizia o outdoor. “Garantias sociais da Federação Russa.”

Volodimir Saldo, um ucraniano que trocou de lado para se tornar o chefe da autoridade de ocupação na região de Kherson, disse que a votação foi tranquila e as pessoas estavam participando com “entusiasmo”. Enquanto eles votavam, ele disse, “seus olhos estão queimando, brilhando, e isso mostra sua atitude em relação a este evento”. Saldo disse na segunda-feira que votos suficientes foram dados a favor da adesão à Rússia. “Estou ansioso para ser libertado”, afirmou.

Ameaças de resposta ‘dura’

“A situação legal mudará radicalmente do ponto vista do direito internacional e isto também terá consequências sobre a segurança nestes territórios”, disse o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov.

Dmitri Medvedev, o ex-presidente da Rússia que agora atua como vice-presidente do Conselho de Segurança do país, confirmou as consequências. “O Exército russo reforçará significativamente a defesa de todos os territórios (ucranianos) anexados à Rússia”, prometeu Medvev no Telegram.

“A Rússia tem o direito de usar armas atômicas, se necessário, em casos predefinidos, em estrita conformidade com os princípios da política governamental de dissuasão nuclear”, acrescentou Medvedev.

Os ucranianos expressaram temor de que uma consequência imediata da anexação seja o recrutamento para as forças armadas russas e serem forçados a pegar em armas contra seu próprio país. Em partes de Luhansk e Donetsk, que estão ocupadas pela Rússia desde 2014, isso já acontece.

Os países do G7 prometeram nunca reconhecer os resultados. O governo dos Estados Unidos citou uma resposta “rápida e severa” por meio de sanções econômicas adicionais às anexações, que devem acontecer de maneira rápida, como no caso da Crimeia em 2014.

O secretário de Estado americano, Antony Blinken, disse que a votação “era uma farsa, e ponto final”. Jens Stoltenberg, secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), pediu à comunidade internacional que intensifique o apoio à Ucrânia. “Os referendos falsos não têm legitimidade”, escreveu ele no Twitter na semana passada.

A China, aliado importante da Rússia, não criticou abertamente os referendos, mas pediu o respeito à “integridade territorial de todos os países”.

Fuga dos russos

Com o anúncio, aumentaram temores de que Putin possa declarar lei marcial, o que levaria ao fechamento das fronteiras, impedindo a fuga da convocação de 300 mil civis determinada pelo Kremlin na semana passada. A primeira convocação de reservistas já impulsionou um êxodo de homens russos em idade de combate, com congestionamentos cada vez maiores nas passagens de fronteira russa, que causaram enormes filas de carros.

O Kremlin chegou a despachar forças de segurança para vários pontos da fronteira com a Geórgia e a Mongólia para entregar aos homens russos em fuga suas cartas de convocação. O Kremlin também parou de emitir, na quarta-feira, 28, passaportes para pessoas que foram convocados.

O êxodo russo também tem sido motivo de preocupação para os vizinhos de fronteira. Ainda na semana passada, a Finlândia (único país da União Europeia a aberta a turistas russos com visto) defendeu suspender a entrada de cidadãos russos no país em meio à corrida para a fronteira. Na Geórgia, o ministro de Assuntos Internos Vakhtang Gomelauri disse que cerca de 10.000 russos chegam ao país todos os dias, quase o dobro em comparação ao período anterior a mobilização dos reservistas russos. O país anunciou um aumento no número de guardas no posto de controle, mas disse “não ver motivo” para fechar a fronteira.

No Casaquistão, outro país vizinho que permite a entrada sem visto para portadores de passaporte russo, os moradores da cidade fronteiriça de Uralsk transformaram um cinema em um abrigo temporário para russos que não conseguiam encontrar um quarto de hotel ou apartamento para alugar. O presidente Kassym-Jomart Tokayev disse que o país tem a obrigação de ajudar os russos que chegam.

“Nos últimos dias, muitas pessoas da Rússia têm vindo até nós”, disse Tokayev. “A maioria deles é forçada a sair por causa da atual situação desesperadora. Devemos cuidar deles e garantir sua segurança. Esta é uma questão política e humanitária”.

Ressaltando uma crescente rixa com o Kremlin sobre a invasão da Ucrânia, o líder casaque também pediu respeito pela integridade territorial, aludindo aos referendos de anexação. E ele alfinetou Putin, que está no poder desde 2000, dizendo que se apenas uma pessoa governa um país por anos, “isso não honra nem este país, nem seu líder”.

Do lado russo da fronteira, a pressão também mobiliza as autoridades. Na região da Ossétia do Norte, na fronteira com a Geórgia, que tem sido um dos principais centros de trânsito para russos que fogem da mobilização militar, autoridades disseram na terça-feira que estavam considerando declarar estado de emergência enquanto milhares de carros faziam fila para cruzar o posto de controle de Verkhni Lars.

“O influxo é enorme, ninguém esperava que fosse tão grande”, disse o chefe da região, Sergei Meniailo. “Não podemos fechar a passagem para a República, mas a questão é muito complicada e teremos de introduzir um estado de emergência parcial”, acrescentou.

Grupos de direitos humanos relataram que alguns russos foram expulsos de postos de fronteira, citando decisões transmitidas por seus comissariados militares locais que proíbem as saídas do país./ NYT, WPOST e AP

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