Integrante do Ministério Público de Contas de São Paulo, Élida Graziane afirma que ajustes patrocinados pelo Congresso não são suficientes para assegurar o bom uso dos recursos públicos
Estadão
BRASÍLIA – As novas regras aprovadas pelo Congresso na sexta-feira, 16, para o orçamento secreto passam longe de resolver os principais problemas do mecanismo que foi criado no governo Bolsonaro para obter apoio político. Para a procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo Élida Graziane, que é especialista em contas públicas e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), os ajustes feitos pelos parlamentares, sob a forma de uma resolução, terão como efeito tornar permanentes o uso “pulverizado, subjetivo e curto-prazista do recurso público”.
O orçamento secreto foi revelado por uma série de reportagens do Estadão. O esquema permitiu a congressistas destinar cerca de R$ 50 bilhões para suas bases eleitorais a partir de 2020, quando as emendas secretas passaram a ser usadas como instrumento de barganha entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o Congresso.
Segundo ela, o orçamento secreto representa um retorno à situação que existia antes da Constituição Federal de 1988 no uso do dinheiro público, “com indicação totalmente arbitrária de CNPJ (empresa que realizará a obra ou serviço), sem sequer formalizar o processo de dispensa ou inexigibilidade de licitação, e sem qualquer planejamento”.
A senhora acredita que essas modificações propostas pelo Congresso resolverão o problema do “toma lá, dá cá” do orçamento secreto?
Não resolverão, porque as alterações não se destinaram à correção da falta de aderência ao planejamento (do Orçamento). Continua sendo uma escolha subjetiva do parlamentar, sem lastro prévio em qualquer diagnóstico impessoal das diversas demandas e sem prognóstico das possibilidades de atuação estatal para enfrentá-las. O ideal seria limitar as emendas parlamentares ao fomento de projetos e atividades previamente delimitados no planejamento setorial das políticas públicas. Mas isso não ocorreu, a despeito de que o montante de 50% das emendas de relator (nome técnico do orçamento secreto) dever ir (de acordo com as novas regras) para as políticas públicas de saúde, educação e assistência social, onde há previsão constitucional e legal de que o dinheiro deva ser usado para atender àquilo que foi definido pelos respectivos planos setoriais.
A prioridade continua sendo os gastos paroquiais e não políticas públicas estruturantes?
Exatamente. As novas regras não resolvem a fragilidade estrutural de permitir que os parlamentares tenham acesso a um mecanismo que opera, na prática, como execução privada do orçamento público. A regulamentação cristaliza a alocação pulverizada, subjetiva e curto-prazista do recurso público. Trata-se de um profundo rebaixamento institucional em relação às regras que almejavam internalizar qualidade, impessoalidade e transparência ao longo da execução orçamentária. Retrocedemos, com o orçamento secreto, ao padrão pré-Constituição Federal de 1988, com indicação totalmente arbitrária de CNPJ (empresa que realizará a obra ou serviço), sem sequer formalizar o processo de dispensa ou inexigibilidade de licitação, e sem qualquer planejamento.
Da última vez que o STF abordou este tema, o Congresso prometeu dar transparência ao mecanismo, mas isto nunca aconteceu. Desta vez será diferente?
O Congresso nunca atendeu, de fato, ao STF. A frustração do planejamento, a falta de licitação (incluídos os processos formais de dispensa e inexigibilidade de licitação), a ausência de prestação de contas sobre custos e resultados, a opacidade no manejo dos recursos fomentam o desvio, o enriquecimento ilícito e a lavagem de dinheiro, dada a natureza de execução privada do orçamento público que essa distribuição balcanizada de recursos possui. Já que o Brasil não vai conseguir extirpar essa profusão de todo tipo de emendas parlamentares ao orçamento público, essas precisam se submeter coerente e plenamente ao regime jurídico da despesa pública. O Legislativo quer o bônus da execução orçamentária, sem arcar com os respectivos ônus (cumprir as mesmas regras que o Executivo cumpre, por exemplo).
A senhora acredita que esta resposta do Congresso pode ser suficiente para evitar que o STF acabe com o orçamento secreto?
Acho que há uma tentativa de acomodação do arranjo atual que maximiza o poder do Congresso, sem, contudo, corrigir seus maiores erros. Infelizmente, uma vez rompida a barragem, não se recupera o imenso manancial de água que escoou… A ministra Rosa Weber (relatora do julgamento sobre o orçamento secreto no STF) não deveria ter voltado atrás na cautelar concedida no ano passado (medida liminar em que suspendeu o mecanismo). Agora é praticamente impossível reverter esse estado de coisas tão suscetível à captura de curto prazo eleitoral.