Busca europeia por alternativas ao gás russo joga crise de energia para países mais pobres

Europa se volta para o gás natural liquefeito, aumentando os preços internacionais e tornando inviável a compra por países do sul da Ásia, que já enfrentam apagões

O navio “Duhail” de Gás Natural Liquefeito do Catar em 2008. Em 29 de novembro de 2022, o Catar anunciou seu primeiro grande acordo para enviar gás natural liquefeito para a Alemanha Foto: AFP

Estadão

A Europa conseguiu afastar o temor de um inverno congelante e escuro ao encher quase 100% de seus estoques de gás natural com o que conseguiu importar da Rússia antes do fechamento das torneiras e preenchendo o restante com gás natural liquefeito (GNL). Porém, a corrida pelo combustível, que não é abundante no mercado, jogou os preços para o alto, tornando inviável que países mais pobres e altamente dependentes da commodity importem o necessário para sua matriz energética.

A queda na oferta é sentida no mundo todo, inclusive no Brasil, que viu suas importações de GNL caírem em meio ao acionamento das termelétricas. Mas a situação é mais dramática no sul da Ásia, em especial Paquistão, Bangladesh e Índia, que além de não conseguirem pagar o mesmo valor que os europeus podem, viram contratos já assinados serem rompidos porque, para as companhias, se tornou vantajoso arcar com as multas e vender para a Europa.

Altamente dependente do gás russo transportado por gasoduto, o GNL se tornou a primeira opção para a Europa após a invasão russa da Ucrânia, seguida por petróleo e usinas nucleares. O GNL é o mesmo gás natural, porém convertido na forma líquida, o que reduz o seu volume de forma a permitir o transporte de navio. Isso permite que os países importem o combustível de outras fontes, principalmente Estados Unidos, Austrália e Catar – mas a Rússia também continua sendo um exportador relevante.

Os maiores desafios, porém, eram a construção de terminais, que pode levar de três a cinco anos, e a capacidade de fornecimento do mercado. A Alemanha, país mais dependente do gás russo, superou o primeiro obstáculo contratando terminais flutuantes de armazenamento e aprovando, em tempo recorde para os padrões da burocracia alemã, construções de novos terminais. Já o segundo obstáculo tem sido derrubado pelo que analistas chamam de “capitalismo selvagem”, em que leva quem pode pagar mais.

“A Europa já importava volumes substanciais de GNL, mas agora foi forçada a aumentar suas importações de em mais de 60% já este ano e no futuro provavelmente precisará importar ainda mais”, afirma Vincent Demoury, porta-voz do International Group of Liquefied Natural Gas Importers (GIIGNL) ao Estadão. O problema, aponta ele, é que o mercado está limitado a 19 países, sendo que mais de 60% está concentrado em EUA, Catar e Austrália.

De acordo com o último relatório do mercado de gás produzido pela Agência Internacional de Energia (AIE), essa expansão europeia só foi atendida porque a importação da commodity na região da Ásia-Pacífico caiu cerca de 7%, muito por causa dos preços altos.

 

“A Europa está aumentando o preço do GNL a um nível no qual compradores asiáticos como o Paquistão não podem competir”, afirmou Alex Munton, diretor de gás global da Rapidan Energy, à edição de dezembro da revista Global Voice of Gas produzida pela International Gas Union, associação que promove a indústria do gás.

Apagões na Ásia

“Por causa da guerra na Ucrânia, cada molécula disponível em nossa região foi comprada pela Europa, porque eles estão tentando reduzir sua dependência da Rússia”, desabafou o ministro de energia do Paquistão, Musadik Malik. Seu país tem tido dificuldade até para encontrar licitantes para novos terminais de GNL. O resultado da queda de 19% nas importações do produto pelo país tem sido cortes programados de energia enquanto busca alternativas.

De acordo com a AIE, há apagões que chegam a durar mais de 12 horas no Paquistão e alguns fornecedores estão com suas entregas de GNL atrasadas. Segundo apuração do Wall Street Journal, houve empresas que aceitaram pagar multas para não entregar a carga. “Os países europeus estão comprando gás de todos os lugares onde há disponibilidade. Como resultado, o GNL, que custava US$ 4 (R$21) há dois anos e meio, não está mais disponível nem mesmo por US$ 40 (R$211)″, afirmou Malik a jornalistas paquistaneses em julho.

Musadik Malik, Ministro de Energia do Paquistão, fala durante Exposição e Conferência Internacional de Petróleo de Abu Dhabi em 31 Outubro de 2022 Foto: Ali Haider/EPA/EFE

Em uma situação parecida está Bangladesh que também sofre cortes de energia desde o terceiro trimestre e suspendeu totalmente as suas compras de gás liquefeito para evitar uma crise econômica, segundo a AIE. O país chegou a ter 20% de sua carga elétrica cortada em julho e até hoje impõe restrições como fechamento antecipado de lojas, jornadas de trabalho reduzidas e desligamento de luzes em edifícios públicos.

A Tailândia também precisou cancelar licitações de compra devido aos preços, e na Índia a queima de gás para o setor energético caiu cerca de 30% nos primeiros oito meses do ano. Além dos grandes cortes de energia, outro problema gerado pela crise atual é que todos esses países estão se voltando para energias mais sujas, como carvão e petróleo.

Até o Brasil tem sentido o impacto, com seus custos para importação do gás subindo mais de 80% este ano, mas com a diferença de que possui uma matriz energética mais diversificada que a dos países asiáticos.

“A Europa está agora tentando colocar um limite ao preço do gás que eles compram no mercado internacional”, lembra Ana Maria Jaller-Makarewicz, analista de energia europeia no Institute for Energy Economics and Financial Analysis (IEEFA) ao Estadão. “Vamos ver se conseguem porque não é fácil. Eles podem até determinar um valor máximo que pagarão e que o Paquistão e outros países consigam pagar, mas pode acontecer de chegar outro país, como o Japão, e falar que aceita pagar mais”.

O fator China

Este cenário ruim não deve melhorar no curto prazo, alertam as agências e consultorias de energia, e pode até piorar caso a China volte a necessitar tanto de gás liquefeito como antes. “Demora de quatro a cinco anos para serem construídos novos terminais de GNL e é por isso que esperamos que o mercado permaneça relativamente apertado até pelo menos 2025 ou 2026, quando devemos ver novas infraestruturas em particular no Catar, EUA e Canadá que já têm planos de expansão”, afirma Vincent Demoury.

Mas até lá, é provável que a China retome sua necessidade de importação, que despencou nos últimos anos por uma série de fatores, mas principalmente por causa da política de “covid-zero”. Se a nação, que sozinha foi responsável por 80% na queda de importações pela Ásia, voltar a procurar o mercado igual aos níveis anteriores, a tendência é aumentar as restrições para os países mais pobres.

“Se a China começar a crescer sua demanda, imagino que só então começar a ver quais soluções serão propostas para essa situação”, dia Jaller-Makarewicz. “A parte triste é que, em um cenário em que estamos lutando contra as mudanças climáticas, essa necessidade de geração de energia infelizmente pode vir em detrimento, e é isso que temos que balancear”.

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