Por maioria de votos, ministros da Corte máxima vedam o uso das emendas do orçamento secreto e dão 90 dias para a publicação de dados relacionados aos empenhos realizados em 2021 e 2022; decisão tem impacto sobre votação da PEC da Transição e relação entre os Poderes
Estadão
Fausto Macedo
Repórter
Por 6 votos a 5, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou nesta segunda-feira, 19, a inconstitucionalidade do orçamento secreto. Os ministros Ricardo Lewandowski, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Carmén Lúcia e Luiz Fux acompanharam o voto da relatora, Rosa Weber, declarando “incompatíveis com a ordem constitucional brasileira” as práticas que viabilizam o mecanismo de negociação de votos por meio da distribuição sigilosa de recursos do governo federal a um grupo restrito de parlamentares, conforme revelou o Estadão.
Com a decisão, ficam vedados o uso de emendas do orçamento secreto para “atender solicitações de despesas e indicações de beneficiários realizadas por deputados, senadores, relatores da Comissão Mista de Orçamento e quaisquer usuários externos não vinculados a órgãos da administração pública federal”. A Corte áxima viu “uso indevido das emendas de relator-geral do orçamento para efeito de inclusão de novas despesas públicas ou programações no projeto de lei orçamentária anual”.
Os ministros de Estado que chefiam pastas beneficiadas com recursos do orçamento secreto vão ser os responsáveis por orientar a execução dos repasses pendentes conforme os programas e projetos das respectivas áreas, “afastando o caráter vinculante das indicações formuladas pelo relator-geral do orçamento”.
Além disso, o Supremo determinou que todos os órgãos responsáveis por empenhos, liquidação e pagamentos ligados a recursos do orçamento secreto em 2021 e 2022 terão 90 dias para publicar os dados referentes aos serviços, obras e compras realizadas com os respectivos recursos, indicando os solicitadores e beneficiários das verbas, de modo “acessível, claro e fidedigno”.
Restaram vencidos, em parte, os ministros Dias Toffoli, André Mendonça, Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes. Os magistrados votaram pela manutenção do esquema montado no governo Jair Bolsonaro, desde que adotados critérios mais transparentes na distribuição dos recursos das emendas parlamentares.
CLIQUE AQUI e confira o vídeo da TV Justiça
Durante a 4ª sessão de julgamento sobre o orçamento secreto, o ministro Ricardo Lewandowski deu voto decisivo ao acompanhar o entendimento da relatora Rosa Weber pela derrubada do orçamento secreto.
“Considerando o atual estado da questão em debate nestes autos, ainda que reconheço os avanços da resolução aprovada pelo Congresso, sobretudo por atender a algumas preocupações ventiladas no curso deste julgamento, quanto a maior transparência, proporcionalidade e generalidade na alocação das emendas do relator geral, entendo que os vícios apontados nas iniciais das ações sob julgamento continuam persistindo, pois a sistemática ainda vigente para distribuição das verbas orçamentárias afrontam as normas constitucionais que regem a matéria, colidindo em especial com o princípio republicano, o qual encontra expressão nos postulados da isonomia, legalidade, moralidade, publicidade, impessoalidade e eficiência que regem a administração pública”, ressaltou.
Lewandowski argumentou na última sessão de julgamento realizada na sexta-feira, 16, que a resolução aprovada às pressas pelo Congresso, com o objetivo de ampliar a transparência do orçamento secreto, estava alinhada aos votos de boa parte dos ministros da Corte e indicou que a medida bastaria para dar legitimidade ao mecanismo. As mudanças feitas pelos parlamentares surgiram diante do risco de o STF acabar com o mecanismo.
No último sábado, 17, o ministro esteve ao lado do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e reforçou que as alterações realizadas pelos parlamentares atendiam às preocupações da Corte. O magistrado indicou ainda que a resolução seria levada em consideração na votação final. Mas, ao analisar o tema nesta segunda-feira, 18, Lewandowski disse que as medidas do Congresso não foram suficientes para adequar o orçamento secreto à legalidade.
“Apesar dos esforços, o Congresso Nacional não conseguiu se adequar às exigências estabelecidas por essa Suprema Corte no que tange os parâmetros constitucionais que devem se enquadrar todas essas iniciativas que dizem respeito ao processo de orçamentação ora em curso no Congresso”, disse Lewandowski.
O ministro disse que a resolução do Congresso segue sem permitir o rastreamento do destino das emendas e continua a impedir a identificação dos nomes dos parlamentares responsáveis pela indicação dos recursos. Segundo Lewandowski, é necessário que haja transparência ativa, com publicidade dos requerentes e destinatários das emendas, de modo a ‘extirpar’ qualquer tipo de sigilo.
O magistrado pontou que a tentativa do Congresso de distribuir as emendas secretas proporcionalmente entre os líderes dos partidos, por meio da nova resolução, mantém a desigualdade entre os parlamentares, assim como a chance de aliados das lideranças serem privilegiados “sem seguir critérios claros e transparentes, abrindo espaço para barganhas políticas”.
Também fez críticas específicas à nova normativa do Congresso, como o aval para que os presidentes do Senado e da Câmara possam indicar 5% das emendas de relator. Segundo Lewandowski, a porcentagem representa um valor ‘extraordinário’. “A nova regulamentação, apesar de constituir um progresso, não resolve vícios de constitucionalidade”, afirmou.
Lewandowski citou as manifestações de parlamentares durante a votação da resolução e apontou que parte dos integrantes da oposição reconheceu que os “vícios” do orçamento secreto não seriam superados com as modificações discutidas na ocasião. “Os próprios parlamentares entendem que a resolução nº3, embora tenha representado um avanço com relação à sistemática vigente das emendas rp-9 (orçamento secreto), não resolve a questão inteiramente”, disse.
“Considerado o elevado coeficiente de arbitrariedade e alto grau de personalismo como são empregados esses recursos públicos pelos congressistas. Como resultado tem se a pulverização dos recursos públicos, a precarização do planejamento estratégico dos gastos e perda progressiva de eficiência econômica. Tudo em detrimento do interesse público “, completou.
Na avaliação do ministro, as emendas do relator ‘subvertem a lógica do sistema de repartição de recursos orçamentários porque retiram do chefe do Executivo a necessária discricionariedade da alocação das verbas, em prejuízo da governabilidade, e em afronta ao mecanismos de freios e contrapesos que forma a separação dos poderes. “Não é possível deixar o presidente do Executivo completamente alheio ao processo de orçamentação”, registrou.
Já o ministro Gilmar Mendes, último a votar nesta segunda-feira, 19,se alinhou à ala do STF favorável a ampliar a transparência do orçamento secreto. O ministro recomendou que, em até 90 dias, fossem identificados os solicitadores e beneficiários dos repasses em plataforma centralizada com as justificativas dos pedidos. Gilmar ainda cobrou dos ministérios do governo a apresentação de justificativa para a liberação dos recursos.
Impacto
Como mostrou o Estadão, o julgamento no STF sobre o orçamento secreto tem impacto na relação entre os Poderes no próximo ano e, sobretudo, na construção da governabilidade do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. O orçamento secreto virou instrumento de barganha política entre o Centrão e o Palácio do Planalto sob o governo de Jair Bolsonaro (PL). É por meio da distribuição de emendas bilionárias, sem qualquer critério técnico, prioritário ou transparente, que o Planalto negocia apoio no Congresso. O caso foi revelado pelo Estadão em uma série de reportagens.
A manutenção dessa prática é considerada essencial pelo Centrão para que a Câmara aprove, nesta terça-feira, 20, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição, que permite ao futuro governo pagar o novo Bolsa Família de R$ 600 e o aumento do salário mínimo. Os deputados ameaçam desidratar o texto, ou até mesmo barrá-lo na Câmara, caso o STF acabe com o orçamento secreto.
Durante a campanha, Lula chamou o mecanismo utilizado no orçamento secreto de “excrescência” e prometeu revogá-lo caso fosse eleito. Agora diplomado, o petista recuou do posicionamento adotado na corrida presidencial. Em reuniões com o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) – a quem já chamou de “imperador do Japão” por operar o esquema -, Lula disse diversas vezes não ter feito articulações com ministros do STF para tentar derrubar o mecanismo.
O eventual fim do orçamento secreto também tem potencial para afetar a relação entre o STF e o Congresso. Deputados e senadores ameaçam não aprovar a proposta orçamentária do Judiciário para 2023, que prevê aumento de salário aos ministros da Corte, provocando efeito cascata para toda a magistratura e o Ministério Público.
O veto aos recursos da Justiça seria uma retaliação dos parlamentares aos magistrados pelo fim do principal instrumento de barganha do Legislativo com o governo. “Vai tirar o orçamento da gente e a gente vai aceitar? Se tirar o nosso, a gente tira o deles”, disse ao Estadão o líder do União Brasil na Câmara, Elmar Nascimento (BA).
Placar e outros votos
Na Corte, seis se posicionaram pelo fim do orçamento secreto. Esses magistrados acompanharam o voto da presidente do STF, ministra Rosa Weber, que definiu a prática como um dispositivo “à margem da legalidade”, “envergonhado de si mesmo”, que impõe “um verdadeiro regime de exceção ao Orçamento da União”. Com esse argumento, Rosa afirmou que o mecanismo deve ser considerado inconstitucional.
Ao acompanhar a relatora, Fachin destacou que ‘não há transparência quando não se explicita os critérios objetivos da eleição de prioridade’. Já Barroso ressaltou que o esquema montado pelo governo Jair Bolsonaro gerou ‘desiquilíbrio imenso à separação de poderes’.
O ministro Luiz Fux chegou a dizer que é possível sintetizar o voto com uma única frase: “Com dinheiro publico o segredo não é a alma do negócio”. Cármen Lúcia chegou a afirmar que o Brasil é uma república e ‘não uma entidade estatal com o nome segredo. “As coisas do estado do povo tem que ser de conhecimento do povo”, ressaltou.
Na ala favorável à manutenção do orçamento secreto há diferentes gradações sobre o nível de transparência que deve ser adotado. Os ministros André Mendonça e Kassio Nunes Marques, por exemplo, não veem conflito algum entre o dispositivo e a Constituição. Exigem apenas que os recursos sejam divididos de forma isonômica entre os parlamentares, com a divulgação dos nomes dos padrinhos das emendas.
O ministro Dias Toffoli, por sua vez, cobrou divisão proporcional das verbas e alinhamento às prioridades do governo. Segundo seu voto, as emendas devem ser alocadas somente seguindo uma relação de programas estratégicos e projetos prioritários – lista a ser definida pelo Executivo. Além disso, para Toffoli, deve haver um limite de valores repassados a cada município e os pagamentos devem ter um ‘papel integrante no planejamento nacional’.
Já Alexandre de Moraes defendeu a adoção de uma solução “intermediária”, que equipara as emendas utilizadas no orçamento secreto àquelas individuais, o que, na prática, esvazia o poder de seus operadores sobre a distribuição dos recursos. O magistrado propôs que o Congresso tenha de publicizar os destinos e objetivos das emendas. Além disso, quer que os valores sejam distribuídos entre os parlamentares seguindo regras de proporcionalidade.
Relação entre Poderes
Para o professor de direito constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio) Wallace Corbo o resultado do julgamento sobre o orçamento secreto pode sinalizar o início de uma autocontenção dos poderes do Supremo em relação ao Executivo, mas não necessariamente indica um alinhamento entre a Corte e o Palácio do Planalto.
“É prematuro dizer que esse julgamento revela uma aliança entre o Supremo e o Lula, porque este tema veio muito mais em resposta ao governo Bolsonaro, e ao próprio Arthur Lira, do que em resposta ao governo eleito”, argumentou. “O Supremo pré-crise não travava as pautas do governo. Pode ser que o Supremo esteja começando a dar sinais de que não pretende mais ser uma pedra no sapato dos governantes que atuam nos limites da Constituição”, completou.
Ainda segundo Corbo, a posição do STF deixa “evidente” que, ao menos neste caso, houve alinhamento de uma ala da Corte com os interesses do futuro governo Lula. “Esse resultado pode indicar vitórias futuras a Lula, mas é difícil afirmar que essa maioria de seis ministros vai se manter para outros temas pelos próximos quatro anos”, afirmou
“Muito mais do que revelar uma aliança com o governo Lula, que pode vir a surgir, no sentido de alinhamento, essa votação é o desfecho de um capítulo em que o Supremo tentou se afirmar como uma instância republicana, que de alguma forma tenta impedir desvios”, completou.
O procurador Roberto Livianu, que preside o Instituto Não Aceito Corrupção (Inac), frisou que o projeto de resolução aprovado pelo Congresso era “insatisfatório” para coibir a captura do orçamento pela cúpula do Câmara e do Senado.
“Esse dispositivo criado pelo Congresso é absolutamente insatisfatório. É, na verdade, um disfarce porque nós continuamos com um orçamento secreto. Nós não podemos ter uma fatia gigantesca do bolo orçamentário entregue aos parlamentares. Não é essa a vontade do povo ou da Constituição. Isso que o Congresso fez é um atalho para tentar minimizar o orçamento secreto, o que não resolve a questão. É preciso desconcentrar o poder e desarmar essa armadilha que não tem sustentação numa República”, disse Livianu.