Especialistas ouvidos pelo ‘Estadão’ explicam como o acordo de colaboração afeta as investigações em andamento e se Jair Bolsonaro pode ser preso a partir das revelações do tenente-coronel
Estadão
O acordo de colaboração premiada feito pelo ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro (PL) Mauro Cesar Barbosa Cid mudou o curso das investigações que envolvem o ex-presidente. Como o conteúdo do acordo está sob segredo de Justiça, ainda não se sabe a extensão das provas que podem ser produzidas a partir dele, mas é motivo de preocupação no núcleo do bolsonarismo.
Como mostrou a Coluna do Estadão, o clima é de pânico no clã Bolsonaro, embora publicamente o discurso seja de perseguição e injustiça. No dia em que a Polícia Federal (PF) aceitou a delação de Mauro Cid, Michelle Bolsonaro foi a um culto evangélico em Taguatinga (DF) e, com a bandeira do Brasil nas costas, chorou e disse “estamos sendo perseguidos e injustiçados”.
O ex-ajudante de ordens foi preso no dia 3 de maio, quando a PF deflagrou a Operação Venire, que colheu provas para a investigação de fraude nos cartões de vacinação de Bolsonaro e sua filha mais nova, Laura. Outra acusação também pesa sobre o tenente-coronel Mauro Cid: ele e o pai, general Mauro Cesar Lourena Cid, são suspeitos de serem peças centrais no caso das joias.
As investigações apontam que Bolsonaro seria mentor e beneficiado de um esquema internacional de venda de joias recebidas como presentes em agendas oficiais. Cid pai e Cid filho seriam dois importantes operadores.
O acordo de colaboração premiada existe há décadas no processo penal brasileiro, mas se consagrou na Operação Lava Jato. Ele foi formalizado em uma única lei em 2013, quando o governo de Dilma Rousseff (PT) promulgou a Lei de Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/2013).
A sistemática dele é simples: o investigado ou acusado que tenha elementos que podem ajudar nas investigações colabora com a Justiça e, se o que ele fornecer levar a boas provas sobre o crime, ele é beneficiado ou com menos acusações ou com penas menores.
O problema é que, na prática, o acordo de delação tem uma abrangência grande. Inicialmente, a Polícia Federal não podia fazer esse tipo de tratativa, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, em 2018, conceder autorização. É o caso do acordo de Mauro Cid, que foi fechado com a PF e apenas homologado no Supremo. Esse pode ser um dos pontos questionados pela defesa de Bolsonaro.
A delação de Mauro Cid pode afetar quais investigações?
Via de regra, como a delação premiada é um meio de obtenção de provas no processo criminal, ela tende a ficar restrita ao que está sendo investigado dentro do caso. A expectativa é que Mauro Cid tenha revelado informações importantes ou no caso da fraude nos cartões de vacina ou no das joias sauditas.
Mas pode ocorrer desse limite ser extrapolado, e o que for dito dentro de um acordo de delação leve as autoridades a abrir outras investigações para apurar outros crimes. É o caso, por exemplo, da delação que o ex-ministro Antonio Palocci fez em agosto de 2018.
Ele estava preso desde setembro de 2016 no âmbito da Lava Jato e apontou a existência de esquemas de corrupção envolvendo Odebrecht, Ambev, Instituto Lula, o próprio presidente, Dilma e várias outras empresas. A delação foi usada como meio de prova em várias ações penais – e foi retirada pelo Supremo de algumas delas depois.
A delação vai levar à prisão de Bolsonaro ou de outros investigados?
Imediatamente, não. Como explica a advogada Esther Flesch, doutora pela USP e sócia do Miguel Neto Advogados, “uma delação, por si só, não pode causar a prisão de ninguém, mas pode trazer elementos que sirvam de ponto de partida para uma investigação ou para validar uma suspeita que já existia”.
Um eventual mandado de prisão não ocorre logo após a delação do ex-ajudante de ordens. Há uma série de caminhos investigativos. A maior expectativa fica em torno do próprio ex-presidente, mas a advogada pondera que Cid pode ter envolvido outras pessoas. “Ele (Mauro Cid) pode ter trazido provas de autoria ou participação de pessoas mais influentes que ele. Só se recebe o benefício da delação quando se traz algo ‘a mais’”.
Mauro Cid pode voltar a ser preso?
Ao homologar o acordo de delação, o ministro do STF Alexandre de Moraes colocou Mauro Cid em liberdade condicional: além da tornozeleira eletrônica, o tenente-coronel está com o porte de arma suspenso e proibido de ter redes sociais, se comunicar com outros investigados ou sair do País. O Exército o afastou das suas funções.
O descumprimento de qualquer uma dessas restrições pode colocar Cid atrás das grades novamente. Além disso, Flesch explica que o acordo de delação não serve como uma “imunidade”. Cid pode ter sua prisão novamente decretada no bojo de outras investigações, se a Justiça entender que é necessário.
De acordo com o o advogado criminalista Pedro Paulo de Medeiros, pós-doutor em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra, a lei permite que o delator volte a ser preso caso a colaboração não cumpra o objetivo de fornecer provas “eficientes” à investigação.
Até existe um precedente da 6ª turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) contra o retorno à prisão, mas foi um caso específico, em que a Corte “destacou que a falta de êxito na celebração do acordo, isoladamente, não autoriza a restrição à liberdade do acusado”, explicou o criminalista.
Que tipos de indícios podem ter sido fornecidos para que Cid conseguisse liberdade?
Embora a delação de Cid ainda esteja sob sigilo, pelo que diz a Lei de Organizações Criminosas, existe um rol específico de informações que podem ter sido fornecidas por ele. A legislação classifica as seguintes hipóteses como informações que levariam a uma “prova eficiente”:
“Por exemplo, será considerada efetiva uma colaboração a partir da qual se consiga descobrir quem são os agentes privados e públicos que praticaram o crime e quais empresas participavam dos esquemas, ou explicar como a organização atua”, disse Medeiros.