Enem sobre herança africana é mote para pensar um país de negros e brancos

Teste que alcançou mais de 4 milhões de estudantes trouxe debates e desafios

U.E.E Edison Cunha, localizada na rua Timbira em Parnaíba. Foto: Paulo Arthur Fontenele da Cunha (06.nov.2024)

O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ocorrido no domingo (03.nov.2024), ao que parece, continua dando o que falar por aí. Menos pelos seus resultados, e, sim, pelo tema proposto — “Desafios para a valorização da herança africana no Brasil”. Do ponto de vista conceitual do concurso, que alcançou cerca de 4 milhões de estudantes em todo o Brasil, o tema, apesar de ser específico, é positivo.

Temas como esses ainda engasgam o país por remexer em antigas feridas abertas na nossa memória colonial, como a questão do negro e escravidão. É óbvio que ao tratar da chamada “herança africana”, expressão desafiadora e dolorosa, que nos remete, do ponto de vista histórico, as tenções vividas em passado recente da nação brasileira, engatilhadas e suscetibilizadas através de calorosos debates e emoções.

É delicado falar de um assunto que remete ao racismo e à exclusão do negro na sociedade de classes. Ao estudar ou lidar com o tema, o jovem estudante passa a questionar se a abolição no Brasil foi benéfica ou não para a população negra e o porquê, tendo líderes abolicionistas incontestes, como José do Patrocínio e André Rebouças, a data áurea tenha sido referendada por uma pessoa branca, no caso, a princesa Isabel.

Lembro que, em dada palestra, falando de intelectuais negros, uma mocinha me perguntou porque os republicanos não derrubaram antes a monarquia e instituíram o fim da escravidão, tendo prevalecido o oposto. Diretamente nada respondi. Mas indiretamente, respondo: talvez porque os ditos republicanos de 15 de novembro tivessem “rabo preso” com o imperador e o 13 de maio possa ter servido de “vingança” à família real, pela perda de “bens” e mão de obra barata, utilitária nas casas grandes e fazendas.

Desde 2003, ou seja, há 21 anos, uma lei, a 10.639, tornou “obrigatório” o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas públicas e particulares no país. A obrigatoriedade, em todo caso, não cai bem em parte alguma. E a lei é mal empregada, sem adesão na direção das escolas.

Por outro lado, o termo “herança”, na acepção africana, remete a algo que pertence a outrem desde passado remoto. Como se a sociedade branca brasileira, ainda hoje, lute por algo que procura reconquistar.

A lei 10.639, ao alterar a LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação) tinha por objetivo combater o racismo e descolonizar o aprendizado da história do negro, narrada pela bolha acadêmica e eurocêntrica.

O Enem propôs a definição da palavra “herança”. É como se o mesmo fosse proposto para a palavra “ancestralidade”. Ancestralidade é alguma coisa que roça o mítico — é busca de identidade e origem. Portanto, “ancestralidade” tem a ver com o negro, a luta por identificar-se numa sociedade que o excluiu. Em linhas gerais, não há racismo antinegro. Não há griô branco.

A genealogia que transporta a ideia de ancestralidade tem sido apropriada, há séculos, por pessoas responsáveis pelo apagamento da cultura dos povos originários do continente africano. Ou seja, a ancestralidade habita pessoas negras, não o contrário. Isto é uma lição, não um sofisma.

Fonte: Folha de São Paulo 

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