Vítimas são expostas, chantageadas por outros adolescentes e obrigadas a se agredirem, diz delegada à frente da Operação Nix

Como no antigo Coliseu de Roma, em que escravizados eram obrigados a lutar até a morte, adolescentes vítimas de crimes nas redes sociais são colocadas em uma espécie de arena para sofrerem humilhações e estupros virtuais.
Essa é a comparação feita pela delegada Lisandréa Salvariego, coordenadora do Núcleo de Observação e Análise Digital (Noad) da Polícia Civil de São Paulo.
Nesta quinta-feira, 3, ela coordenou a 2ª fase da Operação Nix, que cumpriu 22 mandados de busca e apreensão e outros nove de internação de adolescentes.
A delegada detalhou as investigações para o Estadão. Segundo ela, as meninas são obrigadas a introduzir objetos cortantes nas partes íntimas e a praticar automutilação cortando o bico dos seios.
Tudo isso é transmitido online para várias pessoas, que dão ordens para mais autoagressões. Muitas das vítimas tentam o suicídio por causa das chantagens e humilhações.
A abordagem começa com o namoro virtual, em que o agressor ganha a confiança da garota e pede que ela mande uma fotografia ou vídeo íntimo. Depois disso, começam as chantagens e as “arenas virtuais”.
Vários agressores – muitos deles também menores de idade – podem participar ao mesmo tempo. “A vítima é exposta no centro da tela e começam as ordens: ‘faz tal coisa, faz outra coisa’”, descreve a policial.
“Eles (os criminosos) têm poder muito grande para fazer isso porque quase sempre são hackers. Obtêm acesso e fazem dívidas nos cartões do pai ou da mãe da vítima, cortam a luz, a água. Elas (vítimas) sabem que eles são capazes de cumprir as ameaças”, diz a delegada.
Houve casos em que as adolescentes foram obrigadas a escrever o nome do agressor no próprio corpo, cortando a pele com navalha ou lâmina de barbear.
“Eles mandam e elas introduzem objetos perfurocortantes nas genitais, cortam o bico do seio, cortam o cabelo, tomam água da privada. É surreal”, continua a delegada.
Um dos adolescentes apreendidos nessa quinta, no Rio de Janeiro, obrigou a vítima a tomar ácido, além de ter praticado estupro virtual contra uma menina de 12 anos.
O que é estupro virtual?
Desde 2009, quando foi modificado o artigo 213 do Código Penal, a definição do crime de estupro foi ampliada para além do ato sexual forçado.
Segundo a lei, é estupro “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
A contemplação lasciva sem contato físico, por exemplo, pode configurar crime. As penas chegam a 30 anos, se o abuso resultar em morte.
O conceito de “estupro digital” não existe na lei, mas tem sido consolidado em jurisprudência, nos últimos anos, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) para enquadrar atos libidinosos praticados em ambientes online.
Segundo a delegada, nas redes essas dinâmicas de humilhação ocorrem ao vivo. “Temos casos em que elas ficam nuas no Discord, por exemplo. É um ambiente muito bom para isso porque permite o compartilhamento de tela e todo mundo entra para falar”, afirma.
Procurada pela reportagem para comentar, a rede social Discord não falou.
Além do estupro virtual, as redes criminosas ganham dinheiro com as humilhações. “(Os grupos criminosos) Vendem os vídeos com conteúdo de pornografia infantil”, afirma Lisandréa.
Adolescente que vive na França é um dos supostos mentores
Entre os investigados, está um adolescente filho de brasileiros radicados na França. Segundo a delegada, ele é de uma família com poder aquisitivo alto e passou a cooptar outros jovens para o crime virtual.
“Chegou a comprar máscaras e facas para que outros brasileiros fizessem os ataques também”, diz ela. “Passamos o caso para a polícia francesa e, como ele sumiu das redes sociais, acreditamos que já foi apreendido. Estávamos monitorando e vimos que ele sumiu”, continua.
Na maioria dos casos, as famílias dos agressores e das vítimas desconhecem toda a situação. “Quando a vítima faz boletim de ocorrência, temos a percepção que os pais não têm a menor ideia do que se passa com os filhos. Muitas vezes, demoram para acreditar que aquilo é verdade.”
As investigações da operação, que deve ter novas etapas, já duram oito meses. Na 1ª fase, foram cumpridos dez mandados de busca e duas prisões temporárias autorizadas pela Justiça. As ações ocorreram em São Paulo, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e no Distrito Federal.
“Nix”, na mitologia grega era mãe da deusa Nêmesis, codinome usado nas redes sociais por um dos membros dessa rede criminosa online.
Desde que o Núcleo de Observação e Análise Digital foi criado em São Paulo, em 2024, a delegada estima que mais de 160 vítimas foram salvas do estupro virtual ou do suicídio infanto-juvenil devido à ação da polícia.
“Temos visto na rede um número assustador de adolescentes que tentam suicídio. A situação mais comum é de adolescentes que foram vítimas de estupro virtual, mutilação, chantagens. E não sabem lidar com o que aconteceu.”
Onde buscar ajuda
Se você está passando por sofrimento psíquico ou conhece alguém nessa situação, veja abaixo onde encontrar ajuda:
Centro de Valorização da Vida (CVV)
Se estiver precisando de ajuda imediata, entre em contato com o Centro de Valorização da Vida (CVV), serviço gratuito de apoio emocional que disponibiliza atendimento 24 horas por dia. O contato pode ser feito por e-mail, pelo chat no site ou pelo telefone 188.
Canal Pode Falar
Iniciativa criada pelo Unicef para oferecer escuta para adolescentes e jovens de 13 a 24 anos. O contato pode ser feito pelo WhatsApp, de segunda a sexta-feira, das 8h às 22h.
SUS
Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) são unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) voltadas para o atendimento de pacientes com transtornos mentais. Há unidades específicas para crianças e adolescentes. Na cidade de São Paulo, são 33 Caps Infantojuventis e é possível buscar os endereços das unidades nesta página.
Mapa da Saúde Mental
O site traz mapas com unidades de saúde e iniciativas gratuitas de atendimento psicológico presencial e online. Disponibiliza ainda materiais de orientação sobre transtornos mentais.
Estadão