Fumaça das queimadas e Covid deixam rastro de vítimas do sul do Amazonas ao Acre

Análise aponta que fogo fez aumentar o risco de problemas respiratórios na população da região

Incêndio consome o Cerrado durante expedição da Rainforest Foundation para monitorar a produção de soja no Brasil e sua relação com o desmatamento; segundo fotógrafo o poder do fogo com o vento mostra a força da natureza.. Rainforest Foundation Norway /Victor Moriyama

Por Folhapress

“Eu perdi meu irmão e minha irmã no intervalo de 3 meses. Essa é uma doença que eu não desejo nem para o meu pior inimigo”. O relato da técnica de enfermagem Regina Célia Diogo, 53, indica a conexão sorrateira entre queimadas e o agravamento dos casos de Covid-19 no sul do Amazonas.

Análise exclusiva do InfoAmazonia mostra que municípios como Humaitá, onde Regina trabalhou durante toda a pandemia na linha de frente na remoção de pacientes graves, faz parte de uma área crítica, onde os problemas respiratórios da população tendem a piorar por causa do material particulado que circula na atmosfera após as florestas incendiarem. É um cenário conhecido de quem vive na região. No ano passado, entretanto, a chegada do novo coronavírus deu contornos ainda mais dramáticos a uma região que normalmente vive diante de crises tanto ambientais quanto na área de saúde.

O processo que faz a floresta queimar no sul do Amazonas e prejudicar a saúde dos amazônidas está interligado ao que também ocorre em regiões do Acre, de Rondônia e de Mato Grosso, segundo Sonaira Silva, pesquisadora do Laboratório de Geoprocessamento Aplicado ao Meio Ambiente (LabGAMA), da Universidade Federal do Acre, e consultora científica do projeto do InfoAmazonia. “É uma ampliação do arco do desmatamento. As grandes quantidades de queimadas do ano passado estão ligadas diretamente à pecuária e à especulação imobiliária. A questão da falta de governança por parte dos governos municipais, estaduais e federais, que resulta em uma menor fiscalização, também entra nessa equação. As pessoas estão se sentindo mais tranquilas para queimar”, explica Sonaira.

O cotidiano da técnica de enfermagem Regina mudou para sempre, não apenas por causa da perda dos familiares. Com 70% de saturação de oxigênio, quando o ideal é ter pelo menos 95%, Regina precisou ser internada às pressas em setembro. Foram dez dias no hospital. “Troquei de lugar com os meus pacientes pela primeira vez. Foi um momento extremamente difícil e doloroso tanto física quanto psicologicamente. Sentia como se o meu pulmão estivesse nas costas”, descreve Regina. O estado crítico fez com que o diabetes, uma das comorbidades mais associadas ao risco de a Covid desenvolver complicações, ficasse descompensada.

Em agosto, uma extensa área do sul do Amazonas vivenciou uma explosão das internações por Covid-19. O aumento de casos de moradores não apenas de Humaitá mas dos municípios de Lábrea, Novo Aripuanã, Pauini, Apuí e Manicoré estão todos associados às queimadas da região.

Em Lábrea, Novo Aripuanã e Pauini, as primeiras da lista entre todos os municípios amazônicos especificamente em agosto, as internações confirmadas como Covid-19 subiram 82% e as por síndromes respiratórias, 115%. Lábrea passou os 30 dias do mês com os níveis de material particulado acima dos 25 µg/m3 recomendados pela OMS (Organização Mundial de Saúde). Entre julho e outubro foram ao todo 70 dias. Nos mesmos meses, Humaitá ficou 63 dias com o ar pesado, saturado de poluição.

Por mais que os moradores de cidades como Humaitá associem o risco de intoxicação pela poluição do ar a queimadas próximas, visíveis, isso é apenas parte da história. Na Amazônia, queimadas distantes, que ocorrem a centenas de quilômetros, como as registradas muitas vezes nas margens de rodovias, também costumam penetrar nas vias áreas dos habitantes até de outros estados. Análise do InfoAmazonia a partir de medições do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) mostram que, em 2020, 12 municípios sob influência direta da BR-319 somaram mais de 40% dos focos de calor registrados no Amazonas.

No final de agosto de 2020, em plena temporada do fogo, o estudante de nutrição Robson Fadell, 23, de Rio Branco, capital do Acre, começou a sentir os sintomas típicos da asma, doença que o acompanha desde os primeiros anos de vida.

Dez dias depois, acordou sem conseguir respirar. “O grau de comprometimento do pulmão já estava grande”. A tomografia atestou pneumonia avançada e o teste mostrou que o novo coronavírus o havia infectado. O estudante foi imediatamente internado. Duas horas depois, parcialmente sedado, precisou de aparelhos para respirar.

Fadell registrou uma piora significativa nos quatro dias seguintes, com as tomografias apontando pulmões cada vez mais comprometidos. Ele foi preparado para a intubação, porém, na manhã seguinte, apresentou sinais de melhora e os médicos mudaram de opinião.

“O meu período hospitalizado mexeu bastante com o meu psicológico e marcou minha vida para sempre. O tempo todo era aquela incerteza. Pensei que fosse morrer, era o que mais passava pela minha cabeça”, lembra Fadell. O estudante não tem dúvida de que a fumaça das queimadas fragilizou ainda mais seu sistema respiratório, o que contribuiu para a infecção severa pelo coronavírus, que já fez cerca de 1.800 vítimas no Acre.

O caso de Fadell ilustra o momento delicado que Rio Branco viveu durante a temporada do fogo, em 2020. Em setembro, quando foi hospitalizado, a capital acreana teve um aumento de 71% das internações por Covid-19 e 99% por Síndrome Respiratória Aguda Grave, ocupando o topo do ranking estadual. Também naquele mês, o município despontou como o mais poluído do Acre, ficando 27 dias com material particulado acima do recomendado pela OMS. Setembro também foi o período do ano com mais queimadas no estado.

Durante toda a temporada do fogo, que vai de julho a outubro, Rio Branco teve média de 13,2 dias por mês com níveis de poluição prejudiciais à saúde, atrás apenas de Acrelândia (14,8) e Bujari (13,5), no interior. Nesses quatro meses, o Acre teve 22% a mais de hospitalizações por Covid e 29% a mais por síndrome respiratória aguda grave.

O período das queimadas é passageiro, mas seus efeitos podem ser duradouros. Quase um ano após a cura da Covid-19, Fadell ainda vive com sequelas da infecção. A capacidade respiratória, segundo o jovem, não voltou ao que era antes da contaminação. “Se eu falo muito, logo me sinto cansado. Minha pressão também ficou desregulada, assim como a glicemia”, lamenta.

O SUFOCO EM RONDÔNIA

Queimadas atreladas ao desmatamento e massas de ar que se deslocam de outras regiões da Amazônia também poluídas por material particulado pressionam os pulmões dos moradores de várias cidades de Rondônia. Sobre esse pano de fundo, quando a pandemia passou a sufocar a região durante o período de seca em 2020, as internações por Covid, como mostra a análise do InfoAmazonia, subiram até 36%.

Entre julho e outubro de 2020, Rondônia apresentou uma média mensal de 15,6 dias acima do recomendado, o que significa que em metade dos dias de cada mês a população do estado respirou ar com níveis acima do tolerável para a saúde humana durante toda a temporada do fogo. Em nenhum outro estado amazônico a situação esteve tão grave.

Na capital, Porto Velho, a poluição atmosférica está relacionada a um aumento de 45% nas complicações de Covid-19 entre julho e outubro. Só em agosto, mês com maior impacto no município, foram 74% a mais de internações por Covid e 104% por SRAG em geral. A cidade é a sétima, entre todos os municípios amazônicos, com maior impacto da fumaça no aumento de internações.

Contaminada pelo vírus, a manicure Márcia Gude, 39, foi internada nos primeiros meses de 2021 ao mesmo tempo que a mãe, mas em hospitais diferentes. Apenas ela sobreviveu.

Como a mãe de Márcia sofria de problemas pulmonares em decorrência de complicações de uma tuberculose no passado, toda vez que a fumaça das queimadas chegava, ela pedia para a mãe colocar uma máscara. Ao contrário do pensamento comum pela cidade, não é apenas quando fogo e fumaça são visíveis que o risco de respirar material particulado aumenta. Às vezes não se vê o fogo, mas a poluição está presente.

As duas passaram pelo ciclo de queimadas incólumes ao vírus, mas logo no início deste ano se contaminaram. O quadro da manicure evoluiu para uma pneumonia. Márcia foi transferida para o mesmo quarto onde a mãe já estava hospitalizada, mas elas não conseguiam se ver. Com a ajuda de enfermeiros, a única forma de comunicação entre elas era pelas fotos no celular que a equipe de enfermagem fazia nos intervalos dos atendimentos.

“Nós fizemos uma promessa uma para a outra antes de tudo acontecer. Se fosse comigo, também seria com ela. Quando piorei por causa da pneumonia, falei que não queria ser transferida para Porto Velho. O meu desejo foi ficar em Humaitá, com ela”, relembra Márcia mostrando uma foto da mãe.

Esta reportagem faz parte do “Engolindo Fumaça”, projeto especial do InfoAmazonia produzido com apoio da bolsa de jornalismo John S. Knight e do programa Big Local News da Universidade Stanford.

Rebeca Navarro , Lucas Lobo , Leandro Chaves e Camilo Estevam
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