Stallone é um gari com superpoderes no longa que arrebatou os assinantes da Amazon Prime
Estadão
Rodrigo Fonseca Ao divulgar a lista de seus maiores sucessos em 2022, com a primeira temporada de “O Senhor dos Anéis” e a terceira do genial “The Boys” na liderança do pódio das séries, a Amazon Prime revelou que seu filme mais visto do ano foi “Samaritano”. A força de Sylvester Stallone faz toda a diferença em projetos de streaming, como a Paramount Plus vê agora com o êxito de “Tulsa King”, seriado de máfia recém-chegado à sua grade, também com Sly. Chapliano em seu olhar para as lutas de classe num mundo de faz de conta, tipo Gotham City, “Samaritano” se finca numa tradição cinematográfica que ganhou notoriedade em 1921, com “O Garoto”. Celebrizado em cartazes e quadros, “The Kid” ajudou a fazer de Carlitos uma das mais famosas personas do cinema, em sua decisão de tomar conta do órfão Jackie Coogan. É uma escolha voluntária em que o Tramp de Chaplin (O Vagabundo) consegue provar uma máxima poética: há sempre duas solidões que se aguardam. Há grandes sucessos, nas mais variadas línguas, calcados na parceria entre seres alijados da felicidade que ganham uma segunda chance na trombada com uma criança à caça de pai ou de mãe. É uma lógica que nos deu “Glória”, de John Cassavetes (Leão de Ouro de 1980), “Central do Brasil”, de Walter Salles (Urso de Ouro de 1998), “Verão Feliz” (1999), de Takeshi Kitano, entre muitas outras joias. Há algo desse legado cinéfilo no novo longa-metragem de Sylvester Stallone. Sua principal referência é “Shane” (1953), o faroeste lendário de George Stevens (1904-1975), aqui traduzido como “O Brutos Também Amam”. Nesse western primaveril, tudo é inverno na rotina do pequeno Joey (Brandon De Wilde) até a chegada de um forasteiro, dono de uma destreza acima dos padrões, que dá ao guri a atenção que seus familiares, afogados em inércia moral, não podem oferecer. Num Oeste de perigos, Shane vira pai por escolha, não por dever, e dispara sua amizade no coração de um garoto que carece de modelos de retidão (e de amor). É essa a dinâmica que Stallone pratica num thriller de super-heróis elétrico. Um thriller capaz de surpreender por viradas de roteiro, em sua conexão modular com a herança simbólica do bangue-bangue.
Narrativas de paternidade são comuns na carreira de Stallone. A principal delas é “Falcão – O Campeão dos Campeões” (1987). Mas, em “Samaritan”, o desafio do eterno Rambo é injetar um senso de vitalidade às narrativas de super-heróis, estando fora dos códigos da Marvel e da DC. Não se trata de uma adaptação de HQs convencional, com toda uma rede de gibis calçando sua dramaturgia. Trata-se da criação de um universo temático novo, com pés fincados na brutalidade das ruas e do tráfico, com um vilão populista. E o que há de demasiadamente humano nesse enredo é um (tocante) processo de um homem grisalho que fez da memória uma inimiga, e dedica seus dias a esquecer(-se) e ser esquecido, pra poder reaver o respeito próprio de outrora. Aí entra o laço filial de Sam, vivido por Javon Walton. Comandado com esmero pelo diretor Julius Avery (“Operação Overlord”), o filme parte do dia a dia violento de Sam. O menino cresce sob o rugido de balas, prometido para o crime, até ser salvo de uma surra letal por um lixeiro, Joe (Stallone), que tem superpoderes. Sam associa a força do gari ao poder de um vigilante de outrora, o Samaritano, que desapareceu após brigar com seu inimigo nº1, Nêmese. Esse vilão portava uma marreta de energia. Sam cisma que Joe é o Samaritano. Este nega, até sofrer um atentado brutal e revelar quem de fato é. Isso no momento em que o chefão Cyrus (Pilou Asbæk) almeja encontrar o martelo de Nêmese e recriar um símbolo do Mal que inspire os degredados. Essa premissa abre precedente para um tom político contundente para “Samaritano”, sem nunca disfarçar sua natureza marxista, de exclusão dos pobres, que Stallone persegue desde “Rocky, Um Lutador” (1976). Seu novo personagem é um Balboa com tônus de Superman.