Durante a presença americana, muitos artistas fizeram filmes com críticas ao grupo radical.
Por Folhapress
Cineastas afegãos passaram os últimos 20 anos denunciando as atrocidades cometidas pelo Taleban e levaram às telas as histórias de como era a vida sob o comando da organização radical. Agora, porém, eles assistem ao provável retorno do grupo ao poder —e temem ser os primeiros alvos de sua vingança.
Um dos diretores mais conhecidos do país, Siddiq Barmak (do filme “Osama”, de 2003), enviou uma carta a festivais estrangeiros pedindo que ajudassem a chamar a atenção do mundo para essa situação. O texto é assinado também pelo diretor iraniano Mohsen Makhmalbaf (“O Silêncio”, 1998).
“Ninguém se importa com os cineastas independentes afegãos que fizeram filmes críticos contra o Taleban durante todos estes últimos anos”, diz a carta, que recentemente chegou à Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. “Acreditamos que a vida desses cineastas está realmente em perigo e a comunidade mundial de cinema deveria tomar uma ação imediata para salvá-los.”
O Taleban tomou o poder no Afeganistão em 1996, impondo um regime radical. A invasão dos Estados Unidos em 2001 desalojou essa facção. O governo americano estava em busca de Osama Bin Laden, depois dos atentados de 11 de Setembro —o Taleban permitia que a organização terrorista Al Qaeda, de Bin Laden, operasse livremente no país.
A presença de soldados americanos e estrangeiros no país manteve a ameaça do Taleban sob algum controle, apesar de nunca por completo. Mas o atual presidente americano, Joe Biden, deu início em maio à retirada das tropas, afirmando que era chegada “a hora de encerrar a guerra eterna”.
Biden quer se afastar dos conflitos que herdou e reduzir, também, a presença americana no Oriente Médio. Até o fim de agosto, os Estados Unidos já devem ter saído do país —para analistas, deixando uma fruta madura para o Taleban colher.
Segundo o Long War Journal, o Taleban triplicou o número de distritos que controla no Afeganistão nos últimos três meses, desde que os Estados Unidos começaram a sua retirada.
Eram 73 distritos em meados de abril, e o número saltou para 221 em meados de julho. Houve 5.183 civis mortos e feridos no país no primeiro semestre do ano, o que é um aumento de 47% em relação a 2020, segundo os dados das ONU. É o número mais alto desde o início da contagem, em 2009.
“A situação no Afeganistão tem piorado cada vez mais”, diz Barmak à Folha por telefone. Ele fala da França, onde vive exilado com a família por questões de segurança. Segundo ele, os cineastas —como outros artistas, além de jornalistas— são alvos do Taleban porque a facção quer silenciar os afegãos. Como já tinha feito de 1996 a 2001, quando esteve no poder.
“O cinema é um meio potente para dar consciência às pessoas, para dar uma ideia de liberdade para elas, de como respeitar os outros”, diz. “Nestes 20 anos desde o colapso do Taleban, o Afeganistão se tornou um país forte, com liberdade de expressão, e sabemos o valor disso. Isso é uma coisa perigosa para regimes totalitários e religiosos. É contrário à política deles”, explica.
O filme mais conhecido de Barmak, “Osama”, retrata justamente a vida de uma garota afegã sob o regime do Taleban. Ela se disfarça de menino para poder trabalhar. Acaba recrutada para uma escola religiosa fundamentalista, onde é descoberta e punida pelos radicais.
O longa —o primeiro totalmente gravado no Afeganistão desde a tomada da facção em 1996— venceu um Globo de Ouro e causou comoção no mundo.
Começaram, então, as ameaças que fizeram o diretor deixar seu país. E isso quando as tropas estrangeiras ainda estavam por ali. “Cabul se tornou um lugar muito perigoso para mim e para a minha família, porque o Taleban podia aparecer a qualquer momento.”
Barmak cita alguns exemplos de cineastas que seguem no Afeganistão e precisam de ajuda para deixá-lo. Um deles é Ahmad Zia Arash, de “The Bird Was Not a Bird” (2017), a história de um garoto que viaja ao Paquistão para aprender a ser um homem-bomba. Outro exemplo é Mirwais Rekab, de “Kabul Cinema”, sobre um rapaz que cria um cinema ambulante. No filme, o garoto é perseguido pelo Taleban —justamente o destino que os cineastas afegãos querem evitar.
Em comum, esses filmes denunciam as consequências nefastas do regime violento e fundamentalista do Taleban no Afeganistão. Louvam, por outro lado, as jornadas daqueles que conseguem desafiar os radicais, ainda que acabem punidos no fim.
Não está claro o que pode ser feito, neste momento, para evitar que o Taleban se vingue dos cineastas. Os Estados Unidos estão penando para retirar os milhares de tradutores que trabalharam com o país e, por isso, se tornaram alvo da organização radical. Não há sinal de que haja vontade política para retirar, também, os artistas.
Mas a carta de Barmak e Makhmalbaf tem ao menos circulado entre comunidades artísticas ao redor do mundo, entre produtores culturais que buscam uma maneira de amparar os cineastas independentes que desafiaram o Taleban.
“Estamos tentando encontrar uma solução para ajudá-los”, diz Barmak. “Os cineastas não sabem usar armas. Eles têm a câmera, a caneta, as palavras. Mas, agora, não sabem como se proteger.”