Nações europeias próximas a Rússia buscam fortalecer poder militar e testemunham renascimento da prontidão civil que ecoa os períodos mais obscuros da Guerra Fria
Por Estadão
VARSÓVIA (THE WASHINGTON POST) – A guerra na Ucrânia marcou uma nova era de agressão russa, reacendendo a ameaça da guerra nuclear e espalhando crises alimentares e energéticas globalmente, que fizeram preços de produtos aumentarem em todo o mundo. Mas para os países vizinhos, há muito acostumados com a ameaça russa, a guerra está provocando algo mais: chamados nacionais às armas. É o caso da Polônia, país da Otan e da UE, com cada vez mais voluntários para aderir às Forças Armadas.
A Polônia, país que integrou o Pacto de Varsóvia e esteve sob o jugo da União Soviética por mais de quatro décadas, é atualmente a maior crítica de Moscou na Europa. Para fazer face a uma Rússia beligerante, as autoridades daqui estão prometendo dobrar o contingente de suas Forças Armadas, para 300 mil soldados, ao mesmo tempo em que alguns políticos buscam relaxar regulações rígidas para aquisição e porte de armas de fogo, com intenção de colocar mais armamentos nas mãos dos civis.
Cerca de 94% dos poloneses veem a Rússia como uma “grande ameaça”, em comparação a 65% em 2018, de acordo com uma nova pesquisa do Pew Research Center. E 14 anos depois de a Polônia acabar com o serviço militar obrigatório, poloneses de diferentes classes sociais estão se mostrando favoráveis ao retorno de alguma forma de recrutamento militar.
Ao mesmo tempo que o número de poloneses favoráveis ao serviço militar obrigatório aumenta, o país que tinha o mais baixo índice de posse particular de armas de fogo na Europa também testemunha uma elevação no alistamento à sua Força de Defesa Territorial, similar à Guarda Nacional dos EUA, assim como um agudo interesse em cursos de combate e técnicas de sobrevivência e um aumento na procura de horários para treinar em estandes de tiro.
“A sociedade rompeu sua bolha de vidro”, afirmou Krzisztof Wojcik, de 29 anos, fundador de uma entidade sem fins lucrativos que oferece treinamento em técnicas de sobrevivência e instruções para uso de armas de fogo a civis — que testemunhou um salto dramático no interesse por seus serviços desde que a guerra na Ucrânia começou.
“As pessoas pensaram por muito tempo que estavam seguras, que nada aconteceria e que o Exército não era necessário”, afirmou Wojcik, debaixo do intenso sol do verão em um centro de treinamento a 140 quilômetros de Varsóvia, onde 40 civis recebiam cursos em estilo militar pagos pelo governo. “Este não é mais o caso.”
Uma nova Guerra Fria?
Por todo o leste e norte da Europa, pesquisas mostram forte apoio à Otan e atestam a crença de que os Estados Unidos honrarão seus tratados de defesa mútuos caso o Kremlin — ainda encarando uma luta muito mais difícil do que achou ter comprado inicialmente — ameaçar outros países nos próximos anos. Mas as nações que vivem sob a sombra da Rússia continuam preferindo não deixar seu destino aos caprichos da sorte. E estão se movimentando rapidamente para fortalecer seu poderio militar nacional ao mesmo tempo que testemunham um renascimento da prontidão civil que ecoa os períodos mais obscuros da Guerra Fria.
Poucos dias após as tropas russas invadirem a Ucrânia, em fevereiro, Erik Klossowski fez um pedido incomum aos funcionários mais graduados da empresa polonesa de serviços públicos que ele dirigia. A guerra transcorria do outro lado da fronteira. Era hora, ponderou ele, de sua equipe expandir seu treinamento profissional. Todos deveriam aprender a disparar armas de fogo.
“A Rússia ainda é capaz de dar mais passos militares e acionar ameaças assimétricas, como ataques terroristas”, afirmou Klossowski, de 46 anos, que agora planeja treinamentos com armamentos para centenas de funcionários de todos os níveis depois do horário de trabalho neste outono. “Todos precisam estar preparados.”
‘Soldados civis’ se espalham no Leste Europeu
O sucesso da Ucrânia em empregar civis armados para aumentar o contingente das forças regulares do país parece ter inspirado a Polônia e outros países da região a considerar o “soldado civil” um modelo vencedor. Por aqui, o chamado às armas extrapola as Forças Armadas tradicionais, chegando a conselhos administrativos e até às escolas do país. Em setembro, adolescentes com idades a partir de 13 anos passarão a receber treinamentos limitados com armas de fogo.
“Claramente é uma consequência da guerra”, afirmou em entrevista o ministro polonês da Educação, Przemislaw Czarnek. “Dez anos atrás, se um ministro em função houvesse proposto que alunos de ensino fundamental tivessem esse tipo de aula, ele teria sido ridicularizado. Contudo, o que testemunhamos (na Ucrânia) e a maneira com que esta guerra é travada, com tamanhas atrocidades, nos mostra que o perigo é real.”
“Essas habilidades são necessárias”, acrescentou ele. “Não se trata de militarização das crianças, mas das habilidades que seriam úteis para garantir segurança caso o conflito se intensifique.”
Medo de Moscou na Escandinávia e no Báltico
A invasão ocasionou uma reformulação de pensamento similar na Suécia e na Finlândia, que romperam tabus de décadas e se candidataram para aderir à Otan este ano; ambos os países testemunharam uma enorme elevação no número de recrutas se alistando voluntariamente para servir às Forças Armadas. A Lituânia — nação do Báltico e ex-república soviética — também testemunha um aumento nas vendas de armas de fogo para uso pessoal, incluindo armas curtas e semiautomáticas.
O interesse em treinamento para combate pessoal e aquisição particular de armas de fogo foi às alturas na República Checa, palco da Primavera de Praga, que foi reprimida com violência pela União Soviética em 1968. O número de voluntários se alistando para integrar a reserva do Exército checo é tão alto que as autoridades do país afirmaram ser incapazes de processar tantas entradas. As lojas de armas de fogo e os estantes de tiro do país também estão tomados por cidadãos ávidos para comprar armamentos e aprender ou melhorar suas habilidades de tiro.
“As pessoas não acreditam que o Estado tem capacidade de protegê-las”, afirmou Martin Fiser, dono de uma escola de tiro em Praga, onde a estratosférica demanda lotou as vagas para novos estudantes até setembro. “Nosso Exército é minúsculo.”
Talvez em nenhum outro lugar a resposta seja tão surpreendente quanto na Polônia.
Mais armas nas mãos dos poloneses
Em um país dominado pela extrema direita, as rígidas regulações sobre as armas de fogo representavam uma rara exceção na agenda do partido governante, o Lei e Justiça. Os 38 milhões de poloneses têm um índice per capita de armas de fogo relativamente baixo — com 2,51 armas de fogo a cada 100 mil habitantes, em comparação a 19,61 na França e a taxa estarrecedora de 120 armas de fogo a cada 100 mil habitantes nos EUA.
Analistas poloneses afirmam que isso é produto principalmente da era comunista, quando os mestres soviéticos da Polônia reprovavam o uso privado de armas de fogo ao ponto até de desencorajar a caça. Para o bem ou para o mal, os ataques da Rússia contra a Ucrânia estão impulsionando esforços para mudar e liberalizar essas leis.
“Neste momento, somos a sociedade mais desarmada na Europa”, afirmou Jaroslaw Sachajko, legislador federal do partido Kukiz’15 e coautor de um projeto de lei que pretende facilitar para os poloneses a aquisição de armas de fogo — processo que atualmente exige avaliações psicológicas, testes por escrito e extensas checagens de antecedentes criminais.
“Todos os nossos vizinhos têm índices mais elevados de armas de fogo per capita. Os checos, os alemães. Por que motivo eles deveriam ter acesso mais facilitado a armas?”, afirmou Sachajko. Ele acrescentou: “Podemos ver na Ucrânia que armamentos e treinamentos com armas de fogo têm ajudado no esforço” contra os russos.
Em um estande de tiro instalado numa antiga fábrica de carros nas imediações de Varsóvia, Artur Kwiecinski, um executivo da indústria farmacêutica, de 47 anos, conversou com a reportagem em meio ao ruído dos disparos. Ele contou que desde fevereiro está entre os 400 novos sócios de um clube de tiro local, descrevendo sua motivação como “óbvia”.
“É a guerra”, afirmou Kwiecinski. “Ela tornou a segurança pessoal algo mais importante. Tenho mulher, tenho um filho. Tenho que aprender isso.”
Aulas de defesa civil
Aulas de defesa civil, comuns nas escolas polonesas durante a era comunista, praticamente desapareceram nas décadas recentes, enquanto a queda do Muro de Berlim e a adesão da Polônia à Otan e à União Europeia pareceram tornar a noção da guerra coisa do passado.
À medida que a ameaça ressuscita com um rugido, a Polônia tenta se mobilizar para reintroduzir o treinamento com armas de fogo nas escolas — incluindo treinamento teórico no 8.º ano e treinamentos táticos e práticos no 9.º. A instrução combinará tecnologia de realidade virtual e treinamento de tiro em estantes.
“Se algum dia passar pela cabeça da Rússia atacar a Polônia, a Rússia deve saber, o Kremlin deve saber que na Polônia 40 milhões de poloneses estarão prontos para resistir com armas em punho e defender sua pátria”, afirmou em junho o primeiro-ministro polonês, Mateusz Morawiecki, enquanto inaugurava um estande de tiro numa escola de ensino médio em Miszkow, no sul do país. “Não haverá nenhum retorno para o jugo da Rússia.”
A combinação entre armas de fogo e escolas pode chocar alguns americanos, dados os horripilantes massacres que têm ocorrido nos EUA. Mas a medida tem encontrado pouquíssima oposição por aqui. Uma das principais objeções é a perda de tempo em sala de aula para a realização do treinamento, e críticos classificam a medida como uma estratégia do partido governante para bajular sua base.
“É estranho. Tínhamos treinamento com armas de fogo quando eu estava na escola, 30 anos atrás, e nunca pensamos que isso iria voltar algum dia”, afirmou Dorota Loboda, ativista em defesa de direitos parentais e integrante da comissão de educação da Câmara Municipal de Varsóvia. “Não estamos muito felizes com isso. Precisamos de mais psicólogos, mais terapeutas nas escolas. Não de armas.”
O medo da guerra assombra os jovens
A mudança no nível da ameaça tem sido mais chocante para os poloneses mais jovens, que cresceram em uma era de paz, pontuada apenas pela agressão da Rússia na Geórgia, em 2008, e sua anexação forçada da região da Crimeia, em 2014 — ambas ações tímidas em comparação com a invasão em escala total da Ucrânia, que despedaçou as ilusões de muitos poloneses por tempos mais pacíficos. A estudante Justina Muszinska, de 17 anos, passou um dia inteiro no mês passado com seus colegas no centro de treinamento a noroeste de Varsóvia — praticando como construir abrigos, colocar máscaras de gás e disparar armas de fogo.
“Depois da invasão russa à Ucrânia, me dei conta que não tenho ideia de como proteger a mim mesma e as pessoas que amo”, afirmou ela, enquanto descansava após uma aula de primeiros-socorros em campo de batalha. “Eu quis aprender habilidades básicas.”
A Polônia está se movimentando para aumentar seu poder de defesa por meio de sua Força de Defesa Territorial. Criada pelo partido Lei e Justiça em 2017, seus quadros de soldados voluntários, profissionais e eventuais, foram ridicularizados e classificados como o “exército pessoal” do governo. Desde a primavera, a corporação viu o alistamento aumentar em sete vezes.
No domingo passado, em florestas próximas a Varsóvia, hordas de novos recrutas passavam por treinamentos básicos com armas de fogo enquanto instrutores berravam ordens.
“Eles querem defender a si mesmos, suas famílias e sua pátria”, afirmou o tenente Pawel Pinkowski, de 40 anos, comandante de companhia que atuou em conflitos no Iraque e no Afeganistão. “A situação na Ucrânia mostrou que, na verdade, devemos estar preparados.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL