A tensão entre os dois sentidos de ‘igreja’ marcou a história do cristianismo

Com o falecimento do papa Francisco, as atenções estão voltadas para a escolha do novo líder da Igreja Católica. Quem tem algumas décadas de vida já viu o processo acontecer. Quem não tem está sendo abundantemente informado pelos meios de comunicação. Parece algo muito natural: existe uma igreja e ela tem um papa. Tem sido assim por quase 2.000 anos. Mas será que essa foi a intenção de Jesus?
A resposta não é óbvia, e a leitura dos escritos reunidos no Novo Testamento dá margem a interpretações diferentes.
A palavra “igreja” vem do grego “ekkesia” e aparece apenas duas vezes nos evangelhos canônicos, ambas em Mateus, texto escrito várias décadas após a morte de Jesus. Na primeira ocorrência (Mt, 16,18), Jesus diz a Pedro: “tu és Pedro, e sobre essa pedra eu construirei a minha igreja”. Muitos viram nessa passagem a intenção do próprio Jesus de fundar uma igreja como estrutura institucional e escolher Pedro como seu primeiro papa.
No entanto, no mundo antigo, a palavra “ekklesia” designava uma reunião de pessoas, por exemplo, em Atenas, uma assembleia de cidadãos para decidir sobre a vida da cidade. Entre os judeus da época de Jesus, o termo servia para se referir à comunidade de Israel, e não a uma instituição religiosa.
Nos demais textos do Novo Testamento, como as Epístolas e os Atos, “ekklesia/igreja” servia para designar tanto um dos lugares de encontro e oração que começavam a se espalhar pelo Mediterrâneo como o conjunto da comunidade de seguidores da fé em Cristo.
É interessante notar que Jesus foi bastante crítico em relação às estruturas religiosas judaicas de sua época, como mostram seus embates com os fariseus e seu furioso ataque aos mercadores no Templo de Jerusalém. Em seus atos e palavras, há uma condenação à corrupção religiosa institucionalizada.
É difícil, portanto, ver nos ensinamentos de Jesus o projeto de uma poderosa estrutura eclesiástica e de um corpo de sacerdotes organizados hierarquicamente. Mas a história da Igreja Católica se desenvolveu justamente nessa direção. Um primeiro passo fundamental foi a transferência do eixo central do cristianismo: de uma pequena seita judaica da Palestina para a capital do poder do Império Romano.
Se os primeiros tempos foram difíceis e cheios de confrontos com alguns imperadores e autoridades políticas, nos séculos seguintes, sobretudo após o imperador Constantino, a Igreja foi cada vez mais se organizando sobre o modelo do próprio poder imperial romano, com uma estrutura centralizada no papado e uma hierarquia oficial de religiosos. O direito romano serviu de base ao direito canônico e o latim se tornou a língua oficial do cristianismo.
Na Idade Média, a Igreja Católica vai assumindo a forma de um reino, com seu próprio território e governado por uma monarquia teológica. Durante mil anos, entre os séculos 8º e 19, os Estados Papais controlaram uma boa parte da Itália.
Mais recentemente, em 1929, com o Tratado de Latrão, entre a Igreja e o Estado fascista de Mussolini, o Vaticano tornou-se uma espécie de Estado Nacional, com sua pequena sede em Roma, mas, ao mesmo tempo, uma instituição globalizada, com ramificações por todo o planeta. Como todo Estado moderno, tem suas normas, seus funcionários, seus bancos, seus meios de comunicação, suas propriedades etc.
A tensão entre os dois sentidos de “igreja” marcou a história do cristianismo. De um lado, uma comunidade espiritual, formada por seguidores dos ensinamentos de Jesus; de outro, uma hierarquia centralizada em torno de um clero e governada por um líder. O debate que ocorrerá a portas fechadas, no Conclave que escolherá o novo papa, certamente terá de apontar respostas tanto para os fiéis católicos como para a administração do Vaticano e da Igreja.
Folhapress