Os problemas europeus estão afastando ainda mais do Ocidente políticos e estrategistas latino-americanos, escreve o editor-chefe da AQ
Por Estadão
MADRI – Passei as últimas semanas na Europa e sinto em dizer: O humor por aqui está ainda pior do que nas Américas.
Aterrissamos em Madri no dia mais quente de sua história. Fazia 40,7ºC, e nosso trem para a Galícia foi cancelado em razão de incêndios florestais em meio à seca mais intensa na Espanha em 1,2 mil anos (Você deve ter visto aquele vídeo que viralizou com chamas ameaçando um trem que partiu logo antes do nosso). No Reino Unido, a inflação passava dos 10%, a caminho de chegar a 18% em janeiro, enquanto o banco central alertava sobre uma profunda recessão capaz de durar cinco trimestres consecutivos.
Para todos os lugares que viajávamos, notícias e comentaristas na TV falavam de incêndios, greves, preços em alta ou sobre a necessidade premente de reduzir o consumo de energia enquanto a Rússia cortar o fornecimento de gás natural em retaliação ao apoio da Europa à Ucrânia.
A reação do primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, de proibir muitas empresas de regular o termostato de seus aparelhos de ar-condicionado abaixo de 26,7ºC durante o verão ocasionou alertas sobre a possibilidade de espanhóis e turistas estrangeiros “tostarem”. E posso confirmar: nem os texanos são assim tão durões.
É importante lembrar que em grande parte da América Latina, especialmente no Brasil e no Cone Sul, os formuladores de políticas e outras elites assistem aos acontecimentos na Europa tão atentamente quanto os Estados Unidos, ou até mais. E eles estão depreendendo várias lições desse verão de sofrimento no Hemisfério Norte.
Entre elas: veja o que você consegue por assumir lados nessa era emergente de conflito multipolar. A maioria dos países latino-americanos condenou a invasão russa em uma votação no âmbito das Nações Unidas em março, mas eles têm se mostrado mais cautelosos desde então, e a maioria se recusa a adotar as sanções ocidentais.
Enquanto a Europa se prepara para uma crise energética tão devastadora que as buscas no Google na Alemanha para “Brennholz” (lenha) estão explodindo à medida que o inverno se aproxima, alguns diplomatas latino-americanos sentem-se justificados por resistir à pressão de Bruxelas e Washington para fazer mais. “Estamos ultrajados pelo que (Vladimir) Putin fez, mas agimos corretamente em proteger nossos interesses nacionais”, disse-me um deles.
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, creditou repetidamente a garantia do fornecimento de fertilizantes russos escassos em outros países, contribuindo para insegurança alimentar, à sua relação cordial com Putin. Em um raro ponto de concordância entre Brasil e Argentina, o bloco comercial Mercosul negou no mês passado um convite do presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, para comparecer a uma cúpula vindoura.
Os problemas da Europa também reforçam uma narrativa maior: de que o Ocidente está em declínio, e o Oriente, em ascensão, e, portanto, a América Latina deveria tentar uma posição neutra entre ambos e vender pacificamente suas commodities para todo mundo. Essa estratégia, às vezes chamada de “não alinhamento ativo”, está cada vez mais em voga entre políticos e estrategistas de esquerda, centro e direita na América Latina, conforme relatei anteriormente este ano na revista Foreign Affairs.
Isso marca uma grande ruptura em relação aos 30 anos recentes, quando, salvo exceções óbvias, a maioria dos países da região se alinhou profundamente com o Ocidente sobre comércio, política antidroga, governança democrática e outros assuntos geopolíticos.
Na verdade, o pequeno grupo de autoridades europeias que acompanha a América Latina sente claramente que algo lhe escapa. Um relatório interno do braço de política externa da União Europeia revelado este mês pelo jornal El País alertou que a Europa está perdendo comércio e influência na região para Rússia e China, um refrão absolutamente familiar em Washington.
Uma nova geração de líderes, incluindo o chileno Gabriel Boric e o colombiano Gustavo Petro, tem “foco menor no Atlântico e está mais aberta para alianças alternativas”, disse uma fonte da UE ao jornal, notando que 21% dos 33 países da região se juntaram à Iniciativa Cinturão e Rota.
Previsivelmente, o relatório vazado insistia em um engajamento europeu maior na região. Mas o novo veículo-chave, o pacto comercial UE-Mercosul, por fim alcançado em 2019 depois de duas décadas de negociação, está neste momento empacado na fase de aprovação, em meio a objeções de ambos os lados do Atlântico. Com Luiz Inácio Lula da Silva, o candidato mais bem colocado nas pesquisas sobre a eleição presidencial brasileira de outubro, afirmando que buscará renegociar o acordo, é justo duvidar de que o pacto será algum dia implementado de qualquer forma.
Então, qual é a alternativa? Muitos políticos de hoje estão entusiasmados com a ideia de uma maior integração interna entre os países latino-americanos. Há muito potencial aqui, conforme notado no recente relatório especial da AQ: O comércio inter-regional corresponde a apenas 15% do volume comercial da América Latina, contra 38% na América do Norte e 55% na UE.
O novo ministro de Relações Exteriores da Colômbia apregoou maior integração regional em seu primeiro tuíte após assumir o cargo; Boric afirmou neste mês que está aberto para a discussão de uma moeda única latino-americana, ideia que continua um sonho distante (os europeus poderão oferecer alguns conselhos sobre o tema), mas que ilustra o atual nível de entusiasmo.
Não quero ser desmancha-prazeres, mas continuo me perguntando: Será que líderes suficientes nesse atual grupo latino-americano creem realmente no comércio? Eles estariam dispostos a empreender as negociações difíceis, os sacrifícios e a destruição de empregos a curto prazo decorrentes até mesmo dos melhores acordos comerciais? Ou os atuais presidentes se contentarão em construir pontes e erguer outros projetos faraônicos de infraestrutura, talvez criar um ou outro organismo diplomático e declarar vitória? Isso seria suficiente para ajudar uma região que enfrenta desafios severos de crescimento e emprego no pós-pandemia?
Dadas essas incertezas, há um outro olhar para os países latino-americanos diante dos problemas da Europa: Que chance perfeita para aproximar esses países e oferecer-lhes os alimentos e a energia de que eles precisam neste momento de perturbações históricas e transformações de alianças.
Parte disso já está acontecendo, é evidente. Há um entusiasmo renovado em torno do campo argentino de Vaca Muerta, que possui a segunda maior reserva de gás de xisto no mundo. Mas ainda ouvimos comentários como o do ministro da Economia brasileiro, Paulo Guedes, que, em resposta à crítica francesa ao desmatamento da Amazônia afirmou: “Vocês (a França) estão ficando irrelevantes para nós. É melhor vocês nos tratarem bem, senão nós vamos ligar o f…-se para vocês e vamos embora para outro lado. Porque vocês estão ficando irrelevantes”. Nem todos são assim tão rudes, é claro, mas me preocupo porque Guedes não é o único a ver fraqueza quando deveria estar vendo oportunidade. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO