Segundo a ONU, semana após ataque do Hamas foi a mais mortal para palestinos no território desde 2005
Folha de São Paulo
Abed Wadi estava se vestindo para o funeral quando recebeu uma mensagem em seu telefone.
Uma imagem, enviada a ele por um amigo, mostrava um grupo de homens mascarados posando com machados, gasolina e uma motosserra, com texto em hebraico e árabe.
“A todos os ratos nos esgotos da vila de Qusra, estamos esperando por vocês e não ficaremos de luto por vocês”, dizia o texto. “O dia da vingança está chegando.”
Qusra é a vila de Wadi, na parte norte da Cisjordânia, perto de Nablus. Naquele dia, Wadi participaria de um funeral de quatro palestinos locais. Três tinham sido mortos no dia anterior, quarta-feira, 11 de outubro, depois que colonos israelenses entraram em Qusra e atacaram a casa de uma família palestina.
O quarto foi morto a tiros em confrontos com soldados israelenses.
No dia seguinte, os moradores de Qusra preparavam-se para partir para um hospital a meia hora de distância e regressar com os corpos dos mortos. Eles teriam de viajar por terras repletas de assentamentos israelenses, onde o risco de violência — que já é alto mesmo em tempos normais — aumentou drasticamente nas duas semanas desde que Israel entrou em guerra com o Hamas.
Wadi desligou o telefone e continuou se arrumando. Havia quatro corpos no hospital que precisavam ser trazidos para casa. Wadi disse a si mesmo que não seria intimidado por ameaças.
Não tinha como Wadi saber que, dentro de algumas horas, colonos israelenses radicais iriam invadir o cortejo fúnebre, matando seu irmão e seu jovem sobrinho a tiros.
“Se tivéssemos atrasado um ou até dois dias, que bem isso teria feito?” Wadi disse, sentado no pátio da casa de sua família em Qusra.
“Você acha que os colonos teriam deixado este lugar no segundo dia?”
De acordo com a agência humanitária da ONU, a semana que se seguiu ao ataque assassino do Hamas foi a mais mortal para os palestinos na Cisjordânia desde 2005, com pelo menos 75 palestinos mortos pelos militares ou colonos israelenses. Incidentes de violência envolvendo colonos aumentaram de uma média de três para oito por dia.
Em um ataque a um campo de refugiados palestinos, e em um raro ataque aéreo na região, no dia 12 de outubro, as forças israelenses mataram pelo menos 12 pessoas, disseram autoridades palestinas. A polícia israelense disse que um policial foi morto.
Esta semana, a ONU disse que existe “um risco real” de o território ocupado “ficar fora de controle”.
Os moradores palestinos da Cisjordânia dizem que, enquanto a atenção do mundo é atraída para o desastre em Gaza, os colonos israelenses estão aproveitando para entrar nas vilas e expulsar, e até matar, civis palestinos.
Em pelo menos três casos, de acordo com imagens de vídeo ou depoimentos de testemunhas, os colonos usaram uniformes militares ou foram acompanhados pelos militares israelenses nos seus ataques.
Eles dizem que os colonos abriram fogo contra os vizinhos palestinos que vieram ajudar, matando três jovens — Hasan Abu Sorour, de 16 anos, Obayda Abu Sorour, de 17, e Musab Abu Reda, de 25 — e ferindo gravemente vários outros. Moath Odeh, de 21 anos, foi morto posteriormente em confrontos com soldados.
Entre os feridos estavam um pai e sua filha de seis anos, que moravam na casa, que foram baleados no rosto e no abdômen, respectivamente, segundo duas pessoas que atenderam as vítimas em uma clínica médica próxima.
Um dos que atendeu as vítimas na clínica foi Amer Odeh, que é primo de uma delas. Coube a Amer ligar para Said Odeh, pai de Obayda, de 17 anos.
“Eu menti a ele que seu filho estava levemente ferido”, disse Amer, em entrevista ao lado de Said em Qusra, na terça-feira (17). “Eu não poderia dar essa notícia chocante por telefone.”
Said correu para o centro médico. “Me disseram que meu filho estava ferido, mas não havia como vê-lo naquele momento”, lembrou ele, com os olhos brilhando de lágrimas.
“Eu disse a eles que queria ver meu filho agora, entrei naquela sala e vi que pela graça de Deus ele havia sido virado mártir.”
Said Odeh perdeu seu filho de 17 anos na semana passada; ‘Esta tristeza permanecerá com todo o nosso povo’ – BBC
O funeral das quatro vítimas estava marcado para o dia seguinte. Abed Wadi tirou da cabeça a imagem dos homens mascarados com machados e motosserras que recebera em seu celular e se juntou ao cortejo fúnebre que trazia os corpos do hospital para Qusra.
Na estrada Nablus-Ramallah, o comboio foi emboscado por colonos israelenses radicais. No confronto que se seguiu, de acordo com imagens de vídeo e depoimentos de testemunhas, os colonos atiraram pedras no comboio, alguns membros do comboio fúnebre atiraram pedras para trás, e os colonos e soldados israelenses responderam com disparos.
No “caos e nos tiroteios pesados e aleatórios”, Abed Wadi perdeu de vista seu irmão, Ibrahim, um político local de 63 anos do Movimento Fatah, e o filho de Ibrahim, Ahmed, um estudante de direito de 24 anos. Imagens de vídeo de parte do confronto parecem mostrar Ahmed e outros fugindo do tiroteio, antes de Ahmed ser abatido por tiros na estrada.
“Me disseram que meu sobrinho levou dois tiros no estômago e um no pescoço, e meu irmão levou um tiro na cintura, em direção ao coração”, disse Wadi.
“Não havia armas em nosso cortejo funerário”, disse ele. “Normalmente hasteávamos a bandeira palestina nos carros, mas desta vez nem fizemos isso, por medo.”
Moradores de Qusra disseram à BBC esta semana que o medo tomou conta da vila. No fim de semana passado começou a época de colheita da azeitona, mas os moradores que dependem da safra para o seu sustento disseram que não irão para os olivais por medo dos tiros dos colonos.
Já tinha havido um aumento significativo da violência por parte dos colonos israelenses este ano, mesmo antes do ataque do Hamas, segundo dados da ONU, com mais de cem incidentes relatados todos os meses e cerca de 400 pessoas expulsas das suas terras entre janeiro e agosto.
A organização israelense de direitos humanos B’Tselem disse à BBC que documentou “um esforço organizado dos colonos para aproveitar o fato de que toda a atenção internacional e local está focada em Gaza e no norte de Israel para tentar tomar terras na Cisjordânia”.
Dados parciais compilados pelo B’Tselem, cobrindo os primeiros seis dias após o ataque do Hamas, registaram pelo menos 46 incidentes separados em que colonos teriam ameaçado, atacado fisicamente ou danificado propriedades de palestinos na Cisjordânia.
“Muitas famílias e comunidades de pastores fugiram porque foram ameaçadas na semana passada pelos colonos”, disse Roy Yellin, porta-voz do B’Tselem. “Os colonos têm dado aos residentes um prazo para partir e dizem que, se não o fizerem, serão afetados. E algumas vilas foram totalmente esvaziadas.”
Uma dessas aldeias é Wadi al-Siq, perto de Ramallah, que anteriormente abrigava uma comunidade beduína palestina de cerca de 200 pessoas. “Há meses que enfrentamos assédio e ataques de colonos dia e noite, mas desde o início da guerra os ataques aumentaram”, diz Abdul Rahman Kaabna, 48 anos, agricultor de Wadi al-Siq.
No dia 9 de outubro, um grupo de aproximadamente 60 colonos, muitos deles vestidos com uniformes militares, atacou a comunidade, segundo três residentes agora exilados. “Eles nos atacaram com armas e aterrorizaram a todos”, disse Kaabna. “Então eles nos deram uma hora para sair com nossas ovelhas e nos ameaçaram de morte se não partíssemos.”
A BBC pediu ao Conselho Yesha, a organização dos colonos na Cisjordânia e em outros lugares, que comentasse esta história, mas eles se recusaram. Moti Yogev, chefe interino do Conselho Binyamin, que também representa os colonos na região, disse que os colonos violentos “pertenciam à periferia” da comunidade de colonos. “Se existirem, devem ser tratados como qualquer outro criminoso”, disse ele.
As forças militares e policiais israelenses não responderam a vários pedidos de comentários.
“O mais trágico é que a violência por parte destes colonos extremistas não produz qualquer resposta por parte dos militares israelenses”, disse Dov Khenin, um antigo político de Israel que se tornou ativista da paz. “E a violência tem o seu próprio propósito: livrar-se destas pequenas comunidades palestinas e expulsá-las das suas casas.”
Abed Wadi, em casa com seu primo Abdel Wadi, centro, e sobrinho Mahmoud Wadi, cujo pai foi morto na semana passada – BBC
O receio de muitos palestinos agora é que a situação na Cisjordânia só piore. O ministro da Segurança Nacional de Israel, Itar Ben Gvir, anunciou na semana passada que o governo iria comprar 10 mil rifles para armar civis israelenses, incluindo aqueles nos colonatos da Cisjordânia — uma medida que ameaça deixar ainda menos claras as linhas entre colonos armados e membros das forças armadas no território ocupado.
Em Qusra, Abed Wadi disse ter ouvido a notícia sobre os 10 mil rifles. Ele balançou sua cabeça. “Isso não mudará nada para o povo de Qusra”, disse ele.
Wadi estava sentado no seu pátio, rodeado por cartazes com a imagem do seu irmão, do seu sobrinho e dos outros quatro homens da aldeia que foram mortos na semana passada.
“Sempre vimos o fuzil nas mãos dos colonos, eles estão atirando na gente há muito tempo”, disse.
Mas algo mudou, disse ele. Parecia que os colonos tinham ficado mais agressivos, mais radicais. “Fazendas estão sendo queimadas, oliveiras derrubadas, carros arrombados, terras estão sendo roubadas”, disse Wadi.
“E ussi é apenas na nossa vila. Se olharmos para a próxima aldeia e para a próxima aldeia, encontraremos raiva e dor em cada uma”, disse ele. “E não há fim para isso.”
Esse texto foi originalmente publicado aqui.
Alla Badarna colaborou com esta reportagem. Fotos de Joel Gunter.