Falta de informação confiável está entre os motivos que levaram imigrantes japoneses a acreditar que tinham vencido a 2.ª Guerra. Agora, há excesso
Estadão
J. R. Guzzo
Jornalista José Roberto Guzzo escreve semanalmente sobre o cenário político e econômico do País
Numa interpretação inspiradora sobre os abomináveis eventos do dia 8 em Brasília, o jornalista Jack Nicas pergunta, em artigo no The New York Times: “O que conduziu ao ataque em massa na capital do Brasil?”. Sua resposta, simples na forma e complexa no conteúdo: “Delusão em massa”. Trata-se de expressão não tão incomum em inglês, mas com uso bastante restrito em português. Ela pode ser, porém, de grande valia para o entendimento dos crimes cometidos pela turba bolsonarista.
O Oxford Advanced Learner’s Dictionary explica que, entre outros significados, delusão quer dizer “o ato de fazer acreditar ou fazer-se acreditar em algo que não é verdadeiro”. Segundo o Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, delusão significa “ato ou efeito de deludir, de burlar; engano, logro”. Em psicologia, significa “perturbação sensitiva grave”; em psicopatologia, “delírio crônico, avesso à razão ou ao confronto com a realidade”.
A maior parte dos criminosos e desordeiros que invadiram o Congresso, a sede do Supremo Tribunal Federal e o Palácio do Planalto acreditava “em algo que não é verdadeiro”, num “logro”, como a ocorrência de fraude na eleição presidencial, a vitória de seu preferido anulada arbitrariamente pelo Tribunal Superior Eleitoral, a necessidade de repor, pela força se necessário, a verdade das urnas.
Os imigrantes japoneses e seus descendentes também enfrentaram, logo após o fim da 2.ª Guerra Mundial, um episódio que alguns autores descrevem como delusão coletiva. Trata-se do movimento de um grupo expressivo de imigrantes que, um ano após terminados os conflitos na Europa e na região da Ásia-Pacífico, acreditava que o Japão tinha vencido a guerra e combatia seus compatriotas que divulgavam informações corretas sobre a derrota nipônica.
Falta de informação confiável e a proibição de uso em público do idioma japonês estão entre os motivos em geral citados para a propagação tão rápida e extensa de uma versão absurdamente inverídica sobre o resultado do conflito mundial. Agora, mais do que falta, há excesso de informações circulando entre os bolsonaristas inconformados com o fato de que o Brasil tem novo governo desde o dia 1.º de janeiro – e em atividade desde que a figura que eles idolatram desistiu de governar e fugiu do País. Só que são informações falsas. São mentiras.
A delusão bolsonarista alimentou a tentativa de tomada de poder que, em episódios típicos da América Latina, costumava ter à frente uma figura autoritária ou um militar, diz Nicas. E isso foi possível pela disseminação sistemática e extensa, pelos meios eletrônicos, de teorias conspiratórias e mentiras sobre o processo eleitoral brasileiro.
Trata-se de uma interpretação um tanto generosa sobre eventos nitidamente golpistas, mas talvez perigosa. Se ajuda a entender os fatos, essa interpretação não deve servir de argumento para que os criminosos que atentaram contra a democracia não sejam punidos com o rigor da lei. Eles sabiam o que estavam fazendo. Com mais razão devem ser punidos aqueles que ofereceram condições materiais para que os atentados contra os símbolos da República fossem cometidos. E devem ser apuradas as responsabilidades daqueles que tinham função pública mas não a exerceram adequadamente ou, pior, a utilizaram para facilitar os ataques aos Poderes da República.
A inclusão de Jair Messias Bolsonaro nas investigações sobre atos golpistas pode ser o início de sua caminhada em direção às grades. A prisão do ex-ministro da Justiça e ex-secretário da Segurança Pública do Distrito Federal, Anderson Torres, é bom sinal de que o crime contra as instituições republicanas merecerá a punição devida. O afastamento de Ibaneis Rocha do governo do Distrito Federal igualmente mostra o rigor com que a Justiça trata os crimes de 8 de janeiro. Os Poderes da República não podem tolerar atentados como os que vimos.
Mas os meios que propiciaram a disseminação das mentiras bolsonaristas e levaram aos ataques contra a democracia ainda estão à disposição dos criminosos. O governo do PT tem pouca experiência no enfrentamento desse tipo de ação. Por isso, o combate à desinformação e à disseminação de mentiras que fanatizam parte da população deve ser mais duro e, sobretudo, mais eficaz. É indispensável para trazer tranquilidade ao País.
Felizmente, está sendo possível ao governo apresentar um programa de ajuste fiscal, ainda que suas fragilidades e inconsistências venham sendo potencializadas por aqueles que queriam que um governo do PT não fosse um governo do PT. Também está sendo possível ao Brasil apresentar-se ao mundo exterior, levando novas mensagens sobre a preservação do meio ambiente e sobre a inserção do País na economia mundial. Há boa vontade da parte dos principais líderes internacionais com relação ao Brasil e ao governo. Se novas tentativas criminosas contra a democracia não ocorrerem, o caminho, ainda que tortuoso, poderá nos levar a dias melhores.