Projeto que mantém orçamento secreto trata dinheiro público como se fosse privado, diz procuradora

Integrante do Ministério Público de Contas de São Paulo, Élida Graziane afirma que ajustes patrocinados pelo Congresso não são suficientes para assegurar o bom uso dos recursos públicos

A procuradora do MP junto ao Tribunal de Contas de São Paulo, Élida Graziane, critica a tentativa do Congresso de manter o orçamento secreto. Foto: Felipe Rau / Estadão

Estadão

BRASÍLIA – As novas regras aprovadas pelo Congresso na sexta-feira, 16, para o orçamento secreto passam longe de resolver os principais problemas do mecanismo que foi criado no governo Bolsonaro para obter apoio político. Para a procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo Élida Graziane, que é especialista em contas públicas e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), os ajustes feitos pelos parlamentares, sob a forma de uma resolução, terão como efeito tornar permanentes o uso “pulverizado, subjetivo e curto-prazista do recurso público”.

O orçamento secreto foi revelado por uma série de reportagens do Estadão. O esquema permitiu a congressistas destinar cerca de R$ 50 bilhões para suas bases eleitorais a partir de 2020, quando as emendas secretas passaram a ser usadas como instrumento de barganha entre o presidente Jair Bolsonaro (PL) e o Congresso.

Segundo ela, o orçamento secreto representa um retorno à situação que existia antes da Constituição Federal de 1988 no uso do dinheiro público, “com indicação totalmente arbitrária de CNPJ (empresa que realizará a obra ou serviço), sem sequer formalizar o processo de dispensa ou inexigibilidade de licitação, e sem qualquer planejamento”.

A senhora acredita que essas modificações propostas pelo Congresso resolverão o problema do “toma lá, dá cá” do orçamento secreto?

Não resolverão, porque as alterações não se destinaram à correção da falta de aderência ao planejamento (do Orçamento). Continua sendo uma escolha subjetiva do parlamentar, sem lastro prévio em qualquer diagnóstico impessoal das diversas demandas e sem prognóstico das possibilidades de atuação estatal para enfrentá-las. O ideal seria limitar as emendas parlamentares ao fomento de projetos e atividades previamente delimitados no planejamento setorial das políticas públicas. Mas isso não ocorreu, a despeito de que o montante de 50% das emendas de relator (nome técnico do orçamento secreto) dever ir (de acordo com as novas regras) para as políticas públicas de saúde, educação e assistência social, onde há previsão constitucional e legal de que o dinheiro deva ser usado para atender àquilo que foi definido pelos respectivos planos setoriais.

A prioridade continua sendo os gastos paroquiais e não políticas públicas estruturantes?

Exatamente. As novas regras não resolvem a fragilidade estrutural de permitir que os parlamentares tenham acesso a um mecanismo que opera, na prática, como execução privada do orçamento público. A regulamentação cristaliza a alocação pulverizada, subjetiva e curto-prazista do recurso público. Trata-se de um profundo rebaixamento institucional em relação às regras que almejavam internalizar qualidade, impessoalidade e transparência ao longo da execução orçamentária. Retrocedemos, com o orçamento secreto, ao padrão pré-Constituição Federal de 1988, com indicação totalmente arbitrária de CNPJ (empresa que realizará a obra ou serviço), sem sequer formalizar o processo de dispensa ou inexigibilidade de licitação, e sem qualquer planejamento.

Da última vez que o STF abordou este tema, o Congresso prometeu dar transparência ao mecanismo, mas isto nunca aconteceu. Desta vez será diferente?

O Congresso nunca atendeu, de fato, ao STF. A frustração do planejamento, a falta de licitação (incluídos os processos formais de dispensa e inexigibilidade de licitação), a ausência de prestação de contas sobre custos e resultados, a opacidade no manejo dos recursos fomentam o desvio, o enriquecimento ilícito e a lavagem de dinheiro, dada a natureza de execução privada do orçamento público que essa distribuição balcanizada de recursos possui. Já que o Brasil não vai conseguir extirpar essa profusão de todo tipo de emendas parlamentares ao orçamento público, essas precisam se submeter coerente e plenamente ao regime jurídico da despesa pública. O Legislativo quer o bônus da execução orçamentária, sem arcar com os respectivos ônus (cumprir as mesmas regras que o Executivo cumpre, por exemplo).

A senhora acredita que esta resposta do Congresso pode ser suficiente para evitar que o STF acabe com o orçamento secreto?

Acho que há uma tentativa de acomodação do arranjo atual que maximiza o poder do Congresso, sem, contudo, corrigir seus maiores erros. Infelizmente, uma vez rompida a barragem, não se recupera o imenso manancial de água que escoou… A ministra Rosa Weber (relatora do julgamento sobre o orçamento secreto no STF) não deveria ter voltado atrás na cautelar concedida no ano passado (medida liminar em que suspendeu o mecanismo). Agora é praticamente impossível reverter esse estado de coisas tão suscetível à captura de curto prazo eleitoral.

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