O tratamento precoce para Covid-19 ainda tem utilidade no cenário atual? Especialistas respondem

Intervenção em pacientes leves virou tabu pelo uso inadequado da cloroquina há três anos; agora antivirais modernos tornam a proposta viável, mas drogas não chegam a quem precisa no Brasil

Vacinação contra a Covid-19 em posto de saúde do Distrito Federal — Foto: Walterson Rosa/Ministério da Saúde

O GLOBO

A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) terminou seu primeiro congresso presencial dos últimos quatro anos com um dilema diferente sobre a Covid-19. Em 2020, o grupo tentava evitar que um duvidoso “tratamento precoce” com cloroquina sabotasse o apelo por medidas de isolamento antes da vacina. Em 2023, o advento de antivirais modernos tornou realidade o que antes era uma falsa promessa, mas médicos relatam que uma cultura de intervenção precoce custa a decolar.

Apesar de o coronavírus não matar mais pessoas aos milhares, as mortes ainda estão na casa das centenas (no início do mês foram 322 em uma semana) e ele é ainda o patógeno que mais tira vidas no país. No encontro em Salvador (BA), médicos debateram quantas dessas mortes poderiam ser evitadas.

Nenhum estudo fez esse cálculo em detalhes ainda. Ele envolve variáveis como o tamanho da população com imunidade comprometida e a baixa taxa de vacinação nos grupos de risco. Mas com lotes de antivirais à beira de perder a validade, médicos da área estão convictos de que há um contingente razoável de doentes que poderiam se beneficiar da droga e não a estão tomando.

A SBI delegou ao infectologista André Kalil, da Universidade do Nebraska, a tarefa de resumir o status atual de evidência de drogas para Covid-19. Em uma apresentação de slides, ele exibiu uma tabela indicando que, além das vacinas, já há pelo menos quatro moléculas antivirais com eficácia comprovada contra Covid-19. Um imunomodulador já passou no crivo para tratar casos mais avançados da doença.

Os motivos que têm levado pacientes ou médicos a receitar pouco os novos antivirais podem ser vários, mas infectologistas como Carlos Starling, do comitê de Covid-19 da SBI, consideram a situação atual “interessante e controversa”.

— No princípio todo mundo cobrava ‘cadê o tratamento?’, e propagandearam um monte de tratamento que não tinha a menor eficácia. Agora existe o tratamento, e os seguros não pagam — disse.

Alguns medicamentos, como o remdesivir, podem custar mais de R$ 5.000 a caixa nas farmácias, e oneram muito o sistema de saúde, mas o dinheiro não é a única questão. O SUS, desde o ano passado, já distribui medicação para uso no início do curso dos sintomas.

Especialistas não sabem exatamente o que está desestimulando a prescrição. Uma das hipóteses consideradas é a burocracia para liberar a droga nas unidades básicas de saúde. É preciso preencher um formulário de três páginas para comprovar que só pacientes elegíveis para o tratamento o estão recebendo.

A indicação no SUS é para administração até o quinto dia de sintoma maiores de 65 anos ou adultos com sistema imune comprometido que tenham testado positivo para Covid-19. A droga não é dada àqueles nos quais a doença já evoluiu para quadro grave e necessitam de oxigênio. É para evitar chegar a esse estado que a droga é receitada inicialmente.

— Distribuíram 100 mil doses e não fizeram nenhum tipo de orientação para organizar os serviços de saúde na maneira de usar essa medicação — diz o infectologista Júlio Croda, professor da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). — A gente está com milhares de doses que vão vencer, mas no início a gente pensava que 100 mil seria pouco.

Croda afirma que, pela maneira com que o encaminhamento de pacientes com sintomas leves e médios ocorre no Brasil, nem sempre eles chegam aos médicos que receitariam os antivirais dentro da janela de cinco dias, quando eles ainda são úteis.

— Para nós, infectologistas, está clara a necessidade de tratamento, mas existe uma grande dificuldade com o médico da ponta da rede de atendimento — diz Croda.

Mas os critérios para prescrição no SUS também estão em debate. No congresso em Salvador, os médicos reservaram uma sessão para discutir se vale a pena tratar com antivirais os pacientes de Covid-19 que estão com a vacinação em dia. Nesses casos, o curso da doença costuma ser mais limitado, mas quando fatores de risco se acumulam o prognóstico pode mudar.

Mônica Gomes, professora de infectologia da UFPR, propôs na sessão o debate de um caso hipotético de covid com sintomas gripais num homem de 39 anos com diabetes, que morava com a esposa esposa transplantada e a sogra com demência.

Pelos critérios do SUS, o antiviral não seria prescrito a esse paciente, mas vários médicos presentes na apresentação concordaram que é um caso em que uma exceção pode ser aberta, até pelo risco inerente.

Outra questão em debate é que evitar a morte de pacientes é uma meta primordial, mas reduzir tempo de doença e melhorar a qualidade de vida também são objetivos importantes.

— Será que o tratamento com antivirais evita a Covid longa? — questionou retoricamente Mônica Gomes, em referência à forma crônica da doença, também conhecida como síndrome pós-covid.

— Um estudo avaliou a ocorrência de síndrome pós-covid após o uso do nirmatrelvir/ritonavir em comparação ao um grupo controle que não usou antiviral, e mostrou que de cada 100 prescrições do medicamento, houve 2,32 menos casos de covid longa — completou.

Alberto Chebabo, presidente da SBI, concorda que é preciso fazer um trabalho junto aos médicos que estão na ponta da rede de atendimento. No caso dos novos antivirais, a precocidade do tratamento é importante para quem tem riscos e se encaixa na indicação.

— Como a só tem efeito benéfico se começar até o quinto dia, não tenho como saber no momento de prescrever a droga se aquela pessoa vai evoluir gravidade ou não. Se eu espero essa pessoa evoluir com gravidade, ela já perde a indicação — explica.

Tipicamente, depois do quinto dia os antivirais já não têm efeito perceptível no prognóstico do doente. Por isso, Chebabo já não vê mais motivo para tratar a expressão “tratamento precoce” como um tabu.

— Agora sim a gente tem medicação para fazer o tratamento precoce, e quanto mais precoce, mais ele traz benefícios — afirma.

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