Emendas de relator facilitaram a vida de Bolsonaro, mas o que elas realmente garantiram foi o poder desmedido da Mesa Diretora da Câmara, ante o Executivo e o próprio plenário
Estadão
Em março de 2019, o então presidente da Câmara Rodrigo Maia (PSDB-RJ) diagnosticou a existência de um problema que acabaria por se tornar crônico ao longo do mandato de Jair Bolsonaro. Ao falar sobre as dificuldades do governo para aprovar a reforma da Previdência, Maia discorreu sobre a dinâmica entre o Executivo e o Legislativo e as atribuições que cabiam a cada um dos Poderes. “O presidente da Câmara, que sou eu, vai continuar dentro da Câmara, dialogando com os deputados, mas eu não tenho responsabilidade e nem o governo pode me delegar responsabilidade de construir uma base para o governo”, afirmou.
Nunca compreendida pelo governo, a mensagem sintetiza o que foram as relações entre os Poderes nos últimos anos. Muitas vezes, Maia foi acusado de boicotar os projetos defendidos pelo presidente. É verdade que o deputado nunca levou a plenário propostas caras ao bolsonarismo, como as ligadas a costumes, mas também é fato que foi sob sua presidência que os parlamentares deram aval a marcos como a reforma da Previdência, a Lei do Saneamento e a Lei do Gás.
O bolsonarismo, porém, não aceita a independência dos Poderes, e foi assim que decidiu apostar suas fichas na eleição de um aliado para o comando da Câmara. Em 2020, a Secretaria de Governo deu início ao orçamento secreto, privilegiando parlamentares dispostos a votar em Arthur Lira (PP-AL) com as emendas de relator. Inapto e sem disposição para a articulação política, o presidente cedeu o controle de uma parcela da peça orçamentária para se manter no cargo e terceirizou a Lira a função que Maia recusou: formar uma maioria na Casa para aprovar os projetos de interesse do governo.
Sob esse ponto de vista, há quem veja que o Supremo Tribunal Federal (STF), ao declarar a inconstitucionalidade do orçamento secreto, tenha reduzido os instrumentos que o Executivo tem à mão para negociar o apoio do Legislativo e gestado uma crise para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva. Se isso fosse verdade, isto é, se a governabilidade construída à base de emendas de relator fosse garantida, os deputados jamais teriam rejeitado, por exemplo, a PEC do voto impresso, a maior e mais amarga derrota imposta a Bolsonaro.
É claro que a intenção inicial não era essa, mas quem mais se beneficiou do esquema foi Lira. Não é coincidência que o orçamento secreto tenha nascido e morrido às vésperas da eleição do comando da Câmara. Com recursos bilionários à sua disposição, distribuídos por critérios que só ele conhecia, Lira não perdeu nenhuma votação na Casa, à exceção da PEC do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). As negociações entre Lula e o presidente da Câmara para aprovar a PEC da Transição provam que a base aliada, afinal, nunca pertenceu a Bolsonaro. Explicam, também, as razões pelas quais o moribundo governo acabou no dia em que ele perdeu a eleição, em 30 de outubro.
Não há dúvida de que as emendas de relator facilitaram a vida de Bolsonaro, mas o que elas realmente garantiram foi a onipotência da Mesa Diretora. A instituição legislativa, pela primeira vez na história, assumiu uma função típica do Executivo e passou a executar uma parte do Orçamento. As emendas, por fim, fortaleceram a posição do presidente da Câmara perante o próprio plenário de deputados, desequilibrando as relações entre os parlamentares a ponto de, até agora, não haver desafiantes para disputar a eleição com ele em fevereiro.
A ausência das emendas de relator cria, portanto, mais do que uma chance para a reconstrução das relações entre Executivo e Legislativo a partir de novas bases. Abre, também, uma oportunidade para restabelecer as condições de igualdade entre cada um dos 513 parlamentares. O orçamento secreto, afinal, sujeitou todos aos desígnios da Mesa Diretora e retirou a autonomia dos deputados para votar conforme a orientação de seu partido ou sua própria consciência. O fim do instrumento pode, por fim, representar o resgate da maior virtude do plenário: a garantia de que cada voto tem exatamente o mesmo valor.