Saída da americana e lesões de Rebeca Andrade escancaram desafio mental e físico da ginástica.
Por Folhapress
Simone Biles não está ok. E isso é ok.
Dona de quatro ouros olímpicos, a ginasta americana precisou relembrar o óbvio ao abandonar uma etapa dos Jogos de Tóquio na terça (27): “Temos que focar nós mesmos, porque, no final do dia, somos humanos, também”.
No dia seguinte, a jovem de 24 anos também abriu mão de disputar a final individual da modalidade, que acontece nesta quinta (29). “Fisicamente, me sinto bem”, disse Biles ao canal americano NBC. “Emocionalmente, varia com a hora e o momento. Ser a estrela principal das Olimpíadas não é uma tarefa fácil. Então estamos apenas tentando viver um dia de cada vez. Veremos.”
“É ok não estar ok” passou a ser uma conclusão aceitável na elite do esporte, e não mais uma fragilidade incompatível com superatletas, como tempos passados preconizavam.
O campeão Michael Phelps, 36, ajudou a esfarelar esse tabu quando passou a falar abertamente sobre sua luta contra pensamentos suicidas. Em 2018, o nadador narrou seu maior tombo mental, seis anos antes, nas Olimpíadas de Londres. Ali ganharia seis medalhas e uma certeza que, pensava ele, levaria para a vida: “Eu não queria mais estar no esporte. Eu não queria mais estar vivo”.
Em maio, a tenista japonesa que usa fones de ouvido para abafar a ansiedade preferiu abandonar um dos maiores torneios do mundo, Roland Garros, em nome de sua sanidade mental. Em Tóquio, dias após carregar a responsabilidade de acender a tocha olímpica, Naomi Osaka, 23, jogou mais luz sobre o tema ao dizer que sentiu “muita pressão” sobre ela, daí seu revés na quadra.
No Brasil, a ginástica artística é também chamada de ginástica olímpica, e nada gratuita é essa adjetivação. Espera-se um desempenho por vezes superhumano desses atletas, e a sobrecarga mental acaba cobrando sua fatura.
Em 2014, após ser demitido pelo Flamengo e uma depressão lhe enxugar 10 kg, o ginasta Diego Hypolito chegou a se internar numa clínica psiquiátrica. O fantasma dos Jogos de Pequim-2008 era uma das assombrações. Diego, então com 22 anos, estava no auge da carreira. Bastava terminar mais uma sequência de saltos na final do solo, e o ouro era seu. Voou e caiu de bunda.
Elena Mukhina, ginasta soviética de 20 anos, semanas antes dos Jogos de Moscou-1980 tentou uma pirueta particularmente difícil. Caiu, quebrou o pescoço e ficou tetraplégica. Ela ainda não estava totalmente recuperada de uma perna fraturada e mesmo assim foi pressionada a treinar pelo técnico.
Uma década depois, disse num documentário que avisou ao treinador que tinha medo de se machucar gravemente no salto. “Ele respondeu apenas que pessoas como eu não quebram o pescoço.”
Em 1988, Elena tomou para si a responsabilidade pela lesão. “Não culpo ninguém. Fui estúpida. Queria justificar a confiança que depositaram em mim e ser uma heroína.” Morreu em 2006, aos 46 anos, por complicações da queda na juventude.
Colunista da Folha e autora de “Atletas Olímpicos Brasileiros”, Katia Rubio lembra que “no bloco oriental os maus-tratos eram corriqueiros” e não faltava “ginasta que apanhava antes de competir”. Com o colapso soviético, alguns desses técnicos vieram para o Ocidente e trouxeram na bagagem a mesma cultura de abusos físicos e mentais. “Porém, vivemos em regimes ditos democráticos”, diz Rubio. Mesmo neles, a cobrança exagerada sobre atletas produz sequelas. Muitas acabam sendo romantizadas.
O que aconteceu no time americano de ginástica das Olimpíadas de Atlanta-1996 serve de exemplo. Dominique Moceanu, a caçula, tinha apenas 14 anos e uma lesão na perna quando por pouco não custou à sua equipe o ouro, depois de duas sequências ruins.
A colega Kerri Strug, veterana aos 18 anos e também machucada no dia, entrou em cena. Terminou sua apresentação com o calcanhar em frangalhos, garantiu o topo do pódio para o grupo e saiu da arena carregada no colo pela técnica. Virou herói nacional: apareceu na Casa Branca de Bill Clinton, na capa da revista Sports Illustrated e até na caixa de um popular cereal de seu país.
A idealização da atleta que supera qualquer obstáculo se materializa em todas as delegações e respinga ainda hoje. A paulista Rebeca Andrade, 22, com reincidentes lesões, vem sendo ovacionada por ainda assim persistir. Potencial medalhista, ela já pensou em desistir da ginástica. Pelo menos duas vezes.
Na primeira, quando rompeu o ligamento do joelho direito em 2015 e ficou de fora dos Jogos Pan-Americanos. Depois em 2017, lesionada no mesmo local.
“Aqui está a futura Daiane dos Santos”, disse sua técnica, Mônica dos Anjos, em alusão à ginasta que foi a primeira brasileira campeã mundial, em 2003. Assim concluiu ao ver pela primeira vez aquela menina de quase seis anos ser levada pela tia para fazer um teste de ginástica artística num ginásio de Guarulhos (SP).
Em Tóquio, Rebeca ficou em segundo lugar no qualificatório da prova. Líder da classificação e favorita, Biles saiu do jogo e abriu caminho para a brasileira. Foi cuidar de sua saúde mental. O psicólogo do esporte Ricardo Angelo, com experiência em casos olímpicos brasileiros, vê um agravante na ginástica artística em relação a outras modalidades: os atletas, sobretudo as meninas, começam cedo demais.
Vários já treinam aos seis, sete anos. “Na teoria da psicologia do esporte, a gente sugere que você só pode especializar uma criança, ou seja, deixar ela fazer o mesmo esporte, a partir dos 11 anos.”
Não que aos 11 anos elas já sejam fortalezas emocionais, mas, do ponto de visto cognitivo, um pré-adolescente em geral tem um raciocínio abstrato mais desenvolvido.
“Exemplo: se você chega para o seu filho de sete anos, estressada, e fala que ele é incompetente, fracassado, ele vai entender literalmente. A partir de 11, 12 anos, uma criança já pode fazer inferências, ‘meu pai falou isso da boca para fora, mas não sente isso’. Ele tem uma capacidade maior de abstrair.”
Pior é quando os pais, e também os técnicos, falam para valer, e não “da boca pra fora”. Angelo já ouviu pacientes relatarem pressões sobre o rendimento mediante ameaças. Ou eles mandam bem ou perdem benefícios, ficam de fora de competições, deixam de viajar com os campeões de verdade. Coisas assim.
Abre-se a porta para o que psicólogos chamam de Síndrome de Overtraining. Fenômeno comum em atletas de ponta, é o excesso de treinos que, em última instância, pode ter efeito oposto: uma pior performance.
Angelo conta que atende atletas com depressão grave devido à síndrome, “inclusive com intenções suicidas”. A prática esportiva, se desleixada com o bem-estar dos ginastas, pode custar caro para a saúde física e também mental. Outro efeito colateral: distúrbios alimentares, já que é preciso ter um peso “x” para competir, ou o atleta é limado do torneio.
A pandemia jogou fardo mental extra sobre esses jovens, com a paralisação de treinos e o temor de perder a janela olímpica. Carreiras atléticas não costumam ter vida longa, e a chance de participar dos Jogos pode não se repetir.
No caso de Rebeca Andrade, até que ajudou. Em 2019, ela passou pela terceira cirurgia no joelho direito após sofrer nova lesão no ligamento cruzado anterior. Não voltaria a tempo de conquistar a vaga olímpica.
Mas veio a Covid-19, o estado de suspensão do mundo esportivo e o adiamento do evento. Rebeca voltou a treinar em julho de 2020. Simone Biles disse à NBC que o instinto de autopreservação superou o desejo de medalha. “Temos que proteger nossa mente e nosso corpo, em vez de apenas sair por aí fazendo o que o mundo espera da gente.”