Com exigências diferentes pelo País, pessoas com comorbidades têm dificuldade para serem vacinadas

Um dos motivos é a divergência de requisitos adotados pelas prefeituras

Seringa nova é preparada para a aplicação do imunizante. Zanone Fraissat/Folhapress/

Por Estadão

Pessoas com comorbidades têm relatado dúvidas, falta de informação e até dificuldades para receber a vacina contra a covid-19 em diferentes estados brasileiros. Um dos motivos é a divergência de requisitos adotados pelas prefeituras, que criaram exigências adicionais às indicações do Plano Nacional de Imunização (PNI), estabelecido pelo Ministério da Saúde.

Nas redes sociais de prefeituras, governos estaduais e órgãos públicos, milhares de comentários com dúvidas sobre o tema se multiplicam diariamente. A população questiona sobre os documentos necessários, doenças incluídas, tipos de hipertensão e asma considerados e uma infinidade de outros pontos.

Fora do ambiente digital, porém, a situação não é tão diferente. “Está uma falta de informação total, ninguém sabe de nada”, critica o mecânico aeronáutico Luciano Corrêa de Souza, de 46 anos. De São Carlos, no interior de São Paulo, ele teve a primeira tentativa de tomar a vacina negada porque o documento enviado pelo médico não trazia a palavra “imunossuprimido” e o nome dos remédios que toma.

Antes de ir ao ponto de imunização, ele já havia anexado cópias de documentos, como identidade e comprovante de residência, no site municipal. Ao chegar, teve novamente os papéis conferidos, recebendo a negativa após 2 horas de espera. “Deveriam saber que transplantado é imunossuprimido.”

O comprovante trazia a confirmação de que Souza tem um rim transplantado e toma medicamentos diversos diariamente, o que o configura como uma pessoa com imunodepressão e, portanto, parte do grupo prioritário da vacinação.

“A carta do médico tinha dados, data, tudo, recomendando tomar a vacina da covid e da gripe”, comenta. “Um amigo que também é transplantado (e mora na mesma cidade) só levou uma carta e foi vacinado. Cada lugar faz o que quer, não tem orientação.”

Ele procurou, então, novamente o médico, que enviou uma carta em que descrevia o tratamento e a condição de imunossuprimido. “Cheguei no outro posto e a moça pediu também uma receita dos remédios”, relata. Mas, dessa vez, insistiu que o comprovante era suficiente e conseguiu ser, enfim, vacinado. “É uma criação de caso em cima da outra.”

Para ele, os municípios deveriam ser subordinados às exigências dos Estados a fim de evitar desinformação e conflitos, ainda mais por envolver uma população que é mais vulnerável a desenvolver casos moderados e graves da covid-19. “Não dá para ficar indo nesses lugares cheios. Eu não estou saindo de casa há 1 ano e 2 meses.”

Para as comorbidades, segundo o PNI, bastaria a apresentação de “qualquer comprovante que demonstre pertencer a um destes grupos de risco (exames, receitas, relatório médico, prescrição médica etc.)”, além de “cadastros já existentes dentro das Unidades de Saúde”.

Já a maquiadora Luana Calvelli, de 32 anos, enfrentou dificuldades na comprovação, pois não havia agenda disponível para atendimento médico nos próximos dias nas unidades de referência da região em que vive, no Rio. Por estar desempregada, ela não tinha como procurar um atendimento particular para obter um atestado ou laudo.

“Para obesidade, basta um profissional da área da saúde para medir sua altura, ver quanto você pesa e calcular o IMC. Não tem como forjar um laudo de obesidade, basta olhar para a pessoa. Isso poderia ser feito no ato da vacinação”, defende. A obesidade é diagnosticada exclusivamente com um cálculo simples do Índice de Massa Corporal (IMC), feito a partir das medidas de peso e altura.

Por morar com o pai idoso e com comorbidades, ela insistiu em procurar uma alternativa para ser vacinada. “Mandei mensagem para várias pessoas públicas, vereadores, para ver se alguém poderia fazer algo, pois percebi que essa dificuldade não era só minha.”

A maquiadora conta que a mãe, que é diarista, comentou sobre a situação com uma cliente, para quem faz faxina regularmente. A mulher pediu à nora, que é médica, para atender Luana de forma gratuita, a fim de constatar o IMC e emitir o laudo. “Se não fosse por isso, não tomaria a vacina agora, perdendo o meu direito enquanto pessoa com comorbidade”, desabafa.

A comprovação de obesidade é distinta em outros locais do País. Em Manaus, por exemplo, basta apresentar um comprovante de IMC com valor igual ou maior que 40 assinado por um profissional de saúde com nível superior, como nutricionista, farmacêutico, médico, enfermeiro e educador físico. No Rio Grande do Sul, por sua vez, a orientação é apresentar uma declaração de próprio punho, mas parte dos municípios gaúchos também faz exigências adicionais.

Em Fortaleza, por exemplo, a pensionista Maria do Carmo Freitas, de 59 anos, teve a imunização negada porque a equipe não aceitou exames datados de agosto passado, embora a paciente tenha cardiopatia, estente (prótese interna que evita o entupimento de artérias) e ponte de safena.

Ela e a filha Camila, de 27 anos, foram atrás de documentação no hospital em que costuma se tratar de cardiopatias, mas também não conseguiram. Por fim, no dia seguinte, conseguiram o comprovante em uma unidade de saúde.

“Acho que é necessário comprovar, mas houve um desencontro de informações muito grande”, comenta Camila. “No caso da minha mãe, foi uma coisa que me deixou muito preocupada, porque ela já tem uma saúde frágil, e eu ter de levá-la a um posto de saúde cheio de gente com casos de covid-19… Fiquei meio apreensiva.”

Em nota, a prefeitura local afirmou que cobra a apresentação “atestado, relatório ou prescrição médica indicando o motivo para a aplicação da vacina, com validade de até um ano”.

Também em Fortaleza, a sobrinha de uma mulher com hipertensão comentou sobre o caso com a reportagem, mas preferiu não se identificar. “Os médicos têm negado, porque ela toma somente um remédio”, explicou. Esse pré-requisito varia, contudo, de acordo com o estágio da doença. Após algumas tentativas e ter perdido o dia que iria se imunizar, por fim, conseguiu ser vacinada.

Com a falta de informação, pacientes que não integram o grupo de prioridades acabam ficando com dúvida e também procurando os postos de vacinação. De Jaguariúna, no interior paulista, o engenheiro de projetos Edson Rodrigues, de 54 anos, chegou a ir se vacinar, pois tem hipertensão. Foi somente no local, contudo, que soube que as características do estágio da doença não se enquadram nos requisitos mínimos.

Sem querer se identificar, a filha de um morador da cidade de São Paulo contou à reportagem que foi um processo “estressante” por ter ouvido informações distintas passadas a pacientes que estavam na fila de um posto de vacinação, tanto que algumas pessoas com quadro semelhante ao de seu pai de hipertensão chegaram a ir embora. “Ficamos lá quietinhos e insistimos, daí a vacinação aconteceu normal. Ele até chorou de alívio por conta da incerteza.”

Negacionismo

Outra dificuldade relatada por pacientes é a recusa de parte dos profissionais de saúde por negacionismo e ideologias. A dona de casa Marina Coffani, de 38 anos, teve o pedido de comprovante negado pelo médico que a acompanha há anos, o qual costuma afirmar que as pessoas que tomam as vacinas contra a covid-19 são “cobaias”. “Aqui, no Rio Grande do Sul, é complicado…”, disse.

Antes disso, Marina já havia procurado um ponto de vacinação em Três Coroas, interior gaúcho, com exames que comprovam ter uma doença cerebrovascular, mas lhe foi pedido que levasse um documento assinado por um médico. Com a recusa, ela foi então a um posto de saúde e, enfim, obteve o documento.

Veja as comorbidades previstas no PNI:

Diabetes mellitus: qualquer indivíduo com diabetes;

Pneumopatias crônicas graves: indivíduos com pneumopatias graves incluindo doença pulmonar obstrutiva crônica, fibrose cística, fibroses pulmonares, pneumoconioses, displasia broncopulmonar e asma grave (uso recorrente de corticoides sistêmicos, internação prévia por crise asmática);

Hipertensão Arterial Resistente (HAR): HAR= Quando a pressão arterial (PA) permanece acima das metas recomendadas com o uso de três ou mais anti-hipertensivos de diferentes classes, em doses máximas preconizadas e toleradas, administradas com frequência, dosagem apropriada e comprovada adesão ou PA controlada em uso de quatro ou mais fármacos antihipertensivos;

Hipertensão arterial estágio 3: PA sistólica =180mmHg e/ou diastólica =110mmHg independente da presença de lesão em órgão-alvo (LOA) ou comorbidade;

Hipertensão arterial estágios 1 e 2 com lesão em órgão-alvo e/ou comorbidade: PA sistólica entre 140 e 179mmHg e/ou diastólica entre 90 e 109mmHg na presença de lesão em órgão-alvo e/ou comorbidade;

Insuficiência cardíaca (IC): IC com fração de ejeção reduzida, intermediária ou preservada; em estágios B, C ou D, independente de classe funcional da New York Heart Association Cor-pulmonale;

Hipertensão pulmonar: cor-pulmonale crônico, hipertensão pulmonar primária ou secundária;

Cardiopatia hipertensiva: cardiopatia hipertensiva (hipertrofia ventricular esquerda ou dilatação, sobrecarga atrial e ventricular, disfunção diastólica e/ou sistólica, lesões em outros órgãos-alvo);

Síndromes coronarianas: síndromes coronarianas crônicas (Angina Pectoris estável, cardiopatia isquêmica, pós Infarto Agudo do Miocárdio, outras);

Valvopatias: lesões valvares com repercussão hemodinâmica ou sintomática ou com comprometimento miocárdico (estenose ou insuficiência aórtica; estenose ou insuficiência mitral; estenose ou insuficiência pulmonar; estenose ou insuficiência tricúspide, e outras);

Miocardiopatias e Pericardiopatias: miocardiopatias de quaisquer etiologias ou fenótipos; pericardite crônica; cardiopatia reumática;

Doenças da Aorta, dos Grandes Vasos e Fístulas arteriovenosas;

Aneurismas, dissecções, hematomas da aorta e demais grandes vasos;

Arritmias cardíacas: arritmias cardíacas com importância clínica e/ou cardiopatia associada (fibrilação e flutter atriais; e outras);

Cardiopatias congênita no adulto: cardiopatias congênitas com repercussão hemodinâmica, crises hipoxêmicas; insuficiência cardíaca; arritmias; comprometimento miocárdico;

Próteses valvares e Dispositivos cardíacos implantados: portadores de próteses valvares biológicas ou mecânicas; e dispositivos cardíacos implantados (marca-passos, cardio desfibriladores, ressincronizadores, assistência circulatória de média e longa permanência);

Doença cerebrovascular: acidente vascular cerebral isquêmico ou hemorrágico; ataque isquêmico transitório; demência vascular;

Doença renal crônica: doença renal crônica estágio 3 ou mais (taxa de filtração glomerular);

Imunossuprimidos: indivíduos transplantados de órgão sólido ou de medula óssea; pessoas vivendo com HIV; doenças reumáticas imunomediadas sistêmicas em atividade e em uso de dose de prednisona ou equivalente > 10 mg/dia ou recebendo pulsoterapia com corticoide e/ou ciclofosfamida; demais indivíduos em uso de imunossupressores ou com imunodeficiências primárias; pacientes oncológicos que realizaram tratamento quimioterápico ou radioterápico nos últimos 6 meses; neoplasias hematológicas;

Hemoglobinopatias graves: doença falciforme e talassemia maior;

Obesidade mórbida: índice de massa corpórea (IMC) = 40;

Síndrome de down: trissomia do cromossomo 21;

Cirrose hepática: cirrose hepática Child-Pugh A, B ou C.

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