Dúvida sobre receitas e crítica a juros tumultuam 100 primeiros dias de Haddad

Fazenda entregou regra fiscal e avançou em debate sobre reforma tributária, mas economistas ainda veem cenário incerto

Ministro da Fazenda Fernando Haddad completa 100 dias turbulentos à frente da pasta – Ueslei Marcelino / Reuters

Folha de São Paulo 

Iniciou o debate da reforma tributária e apresentou as diretrizes da nova regra fiscal, encaminhando dois temas urgentes, mas atuou de forma errática e ainda não alcançou o que o governo mais quer, um cenário estável para o crescimento. É assim que boa parte dos economistas define a condução da política econômica nos cem primeiros dias de Fernando Haddad à frente do Ministério da Fazenda.

Existe a ambição declarada de estabilizar as contas públicas já no ano que vem. A equipe econômica levou a projeção para o resultado primário, a diferença entre despesas e receitas do governo (menos juros), de um déficit de -2% para -0,5% neste ano, com a promessa de zerar em 2024. No entanto, ainda não deixou claro como vai chegar até lá. Haddad, afirmam, começou e terminou o primeiro trimestre preocupado em elevar a arrecadação para garantir os gastos.

Ao mesmo tempo, ele faz coro com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para questionar a condução da política de juros do BC (Banco Central) autônomo, presidido por Roberto Campos Neto.

Enfim, são sinais considerados dúbios, que alimentam a incerteza —o pior ambiente para a economia, afirmam os analistas.

“Não tinha dúvidas de que embates ocorreriam, mas para minha surpresa, vieram muito cedo, o que prejudica não apenas o crescimento no curto prazo, mas a expectativa de crescimento futuro”, diz Silvia Matos, coordenadora técnica do Boletim Macro FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas).

O economista José Júlio Sena, também do FGV Ibre, reforça essa análise. “A simples mudança de governo melhorou a perspectiva em áreas vitais para o crescimento, como a educação, item básico para a produtividade, a volta das relações internacionais, depois de o país ficar isolado, e o resgate da política ambiental, essencial nas trocas econômicas no século 21”, afirma Sena.

“Mas para a economia funcionar redondinha, a gente precisa de estabilidade macroeconômica, e isso deixou a desejar nesse começo de governo, principalmente por causa dos ataques ao Banco Central.”

As divergências, explicam eles, pioraram as projeções da própria inflação, o que retarda a queda dos juros almejada pelo governo para aliviar o arrocho do crédito, que prejudica as empresas e famílias.

No final de setembro, antes do primeiro turno, o relatório Focus, que reúne cenários macroeconômicos, apontava um IPCA, índice oficial de inflação, de 5% em 2023. Em dezembro, após o governo aprovar um pacote que ampliava as despesas, o IPCA projetado para este ano subiu para 5,31%,

No boletim mais recente, divulgado em 3 de abril, a projeção de inflação para o ano havia subido para 5,96%.

Os discursos de Lula e apoiadores sobre rever a meta de inflação, para reduzir os juros mais depressa, também estão afetando expectativas de longo prazo. Para 2025, o mercado já trabalha com uma inflação de 4%, precificando as falas do presidente. Antes da eleição, a projeção para o período era de 3%.

Enquanto isso, o dólar não cede. Fica na casa de R$ 5,25, quando alguns economistas avaliam que já poderia estar em R$ 4,80. A taxa de crescimento se move lentamente e até recua em 2025 (veja infográfico).

Alguns analisam que erros de estratégia da própria Fazenda ajudaram a azedar os humores.

Dentro do próprio PT há quem se pergunte a razão pela demora em indicar os dois diretores do BC a que o governo já tem direito. Os mandatos terminaram em 28 de fevereiro. A Fazenda poderia ter avaliado os nomes antes e agilizado a sabatina no Senado.

Dois novos integrantes no BC não mudariam a política monetária, mas poderiam estabelecer um diálogo mais diverso, acreditam esses interlocutores. Até agora, a troca não ocorreu.

Alguns também acreditam que haveria menos estresse caso a regra fiscal —que é um sinal oficial de compromisso com as contas públicas— tivesse vindo antes. Haddad não priorizou a medida, enviando antes disso iniciativas de reoneração de impostos.

A Emenda Constitucional 126 estabeleceu que o governo dever enviar ao Congresso um novo regime fiscal até 31 de agosto desse ano. Inicialmente, apesar de contar com inúmeras propostas, inclusive uma produzida pelo grupo de transição do próprio governo, o ministro declarou que a regra seria apresentada no primeiro semestre. Depois, mudou para abril.

Reduzir o prazo só virou prioridade quando, pouco antes do Carnaval, o discurso contra os juros altos incorporou a ideia de destituir Campos Neto. A Fazenda correu para tentar divulgar a regra antes da reunião do Copom (Comitê de Política Monetária), em 21 e 22 de março. Não deu tempo.

A regra veio em 30 de março, apresentada em um PowerPoint. A data de envio do projeto de lei ainda é incerta. Não está garantido que virá na semana seguinte à Páscoa.

“A evolução da agenda foi ruim. O primeiro objetivo dele, desde o início, deveria ter sido a regra fiscal”, diz a economista Elena Landau. “Mas ele colocou a regra fiscal em segundo plano, e o fato de ter feito isso nos fez perder muito tempo. E ele ainda entrou na discussão do Banco Central. Um grande erro.”

O vaivém da Fazenda está frustrando boa parte dos petistas e economistas ditos não liberais.

“A Fazenda está contando que, com a reforma tributária e a nova regra fiscal, vai criar um ambiente para aumentar o investimento privado, e não os gastos do governo. Ou seja, sinaliza a opção por uma política fiscal que, entendo, será contracionista”, diz Simone Deos, pesquisadora Sênior do Cebri (Centro Brasileiro de Relações Internacionais).

Segundo ela, apesar da grita do mercado, Haddad optou por uma estratégia liberal, com algumas pitadas progressistas, mas sem os componentes necessários para o que importa, fomentar o crescimento econômico.

“O investimento só ocorre quando as empresas têm expectativas claras de que vão vender mais e ganhar mais, mas, nesse momento, as empresas estão se desintegrando e não há perspectiva de crescimento”, afirma ela. “O investimento não virá de sinalizações para o mercado financeiro, mas de um plano em que governo e empresas privadas possam investir juntos.”

O economista-sênior da área de Macroeconomia da LCA, Bráulio Borges reforça que o Lula 3 ocorre em um contexto político muito particular, que contribuiu para tensionar o ambiente nesse primeiro momento.

Ainda na transição foi preciso negociar com o Congresso ampliar o Orçamento com uma PEC (proposta de emenda à Constituição). Ali o governo, antes da posse, já se expôs, por entender a necessidade de mudar o patamar de gasto, que subiu de 17,5% do PIB para 19%.

Em janeiro, veio um segundo evento, que mudou Lula, diz o economista. O discurso de inclusão e coalizão se moveu mais à esquerda. “Quando a gente olha o impacto da política sobre a economia, e vice-versa, não tem como não considerar os eventos de 8 de janeiro”, afirma Borges.

“A intentona moldou o discurso público do presidente Lula, e de alguns do entorno dele, e acho que isso pode explicar a subida de tom contra o Banco Central e particularmente contra Campos Neto.”

O economista Felipe Salto afirma que, apesar de todos os percalços, é preciso considerar como positivo o saldo líquido dos 100 dias na Fazenda.

“Temos o arcabouço fiscal antes do prazo, que era um grande obstáculo a ser transporto. Um dos caras que mais entende de reforma tributária, o [secretário da Fazenda] Bernard Appy, já está trabalhando. Haddad acertou uma compensação para os estados na questão dos combustíveis, que era um nó federativo. São avanços”, afirma Salto.

“Vou citar aqui o senador José Serra. Ele lembra que, na matemática, a menor distância entre dois pontos é uma linha reta. Na política, porém, é uma curva senoidal”, brinca.

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