Número 2 da Defesa do novo membro da aliança diz à Folha que Europa precisa compensar peso dos EUA
Folha de São Paulo
A Finlândia decidiu aderir à Otan quando viu que Vladimir Putin ameaçava não só a Ucrânia, mas qualquer país que pretendesse ingressar na aliança militar ocidental. O presidente russo passou a ser “totalmente imprevisível”, o que mantém aberto o risco de uma guerra nuclear.
A análise desassombrada do intrincado cenário da segurança mundial após mais de 13 meses de Guerra da Ucrânia foi feita à Folha pelo secretário permanente do Ministério da Defesa finlandês, o general Esa Pulkkinen, no início da noite de segunda (10) em um hotel no Rio de Janeiro.
O número 2 da pasta está no Brasil para participar da LAAD, a maior feira de defesa da América Latina, que começou nesta terça (11). Aos 65 anos, ele tem longa experiência militar e política —chefiou o Estado-Maior de países da União Europeia e comandou unidades das Forças Armadas de seu país.
“Quando Putin começou a falar no fim de 2021 sobre a proteção dos interesses de segurança da Rússia, especialmente a expansão da Otan, é claro que ele mirava a Ucrânia, mas a interpretação na Finlândia foi de que qualquer país estaria sujeito a ações”, afirmou ele, que assumiu o posto semanas antes da guerra.
Após perder 10% do seu território para a União Soviética na Segunda Guerra, Helsinque buscou um delicado balanço entre Moscou e Ocidente. Na prática, sempre foi alinhado à Otan. O ocaso soviético de 1991 e a entrada finlandesa na União Europeia quatro anos depois cimentou a prioridade continental.
Segundo o secretário, toda a comunicação foi cortada após a guerra e a adesão à Otan consumada na semana passada, de forma “surpreendentemente rápida”, o que dobrou a ligação por terra da Rússia com seus rivais. “Até abril de 2022, mais ou menos, não tínhamos certeza de que seria assim”, afirma. O preço evidente é o reverso da moeda da proteção da aliança: Helsinque se torna um alvo hipotético evidente.
“Preocupa-me muito [uma eventual Terceira Guerra Mundial, nuclear]. Já me preocupei mais, menos, mas a questão é um risco aberto”, diz o secretário. “O problema é que ninguém sabe qual é a real linha vermelha de Putin. Será a Crimeia [península anexada pelo russo em 2014]? Mas a Ucrânia não tem condições de tomar a Crimeia. Nem um nem outro têm condições de ganhar militarmente hoje”, afirmou.
Para um país cujos políticos são considerados dos mais versados sobre os russos, desde a Guerra Fria, Pulkkinen é realista. O general compartilha a opinião de que a guerra verá tentativas de ofensivas quando o solo endurecer nas próximas semanas, mas não antevê resultados e defende negociações.
O secretário considera que a Finlândia tem muito a oferecer aos outros 30 membros da aliança e faz críticas pontuais ao estado do clube. Apesar de só ter 20 mil militares, 280 mil podem ser mobilizados imediatamente. “A Otan virou uma força expedicionária. Nunca abandonamos a defesa nacional e temos hoje a mais poderosa artilharia da Europa, mais do que países maiores e mais ricos, como a Alemanha.”
A Finlândia tem 682 peças de artilharia e lançadores de foguetes, gastando 2,1% de seu PIB com defesa. Berlim soma 245 dessas armas e 1,2% do PIB. Isso mudará? Pulkkinen acha que algo intermediário sairá da mudança de mentalidade, mas é claro ao dizer que a Europa precisa ter musculatura militar no nível de seu poderio econômico, formando um terceiro bloco num ambiente de Guerra Fria 2.0 entre EUA e China.
A recente visita do presidente francês, Emmanuel Macron, ao líder chinês, Xi Jinping, maior aliado de Putin, é um exemplo da complexidade. “Todos têm suas questões: húngaros, turcos [países que dificultaram a entrada finlandesa na Otan e ainda barram a da Suécia]. Mas com a China é complicado, até mesmo para a Finlândia, há as questões de comércio.”
Por óbvio, nada se compara ao poderio bélico americano, que só no ano passado gastou 40% de tudo o que o mundo empregou com defesa. “Mas precisamos ficar mais fortes, compensar o peso dos EUA na Otan”, diz Pulkkinen, pregando como caminho o investimento em tecnologias de ponta.
É um processo talvez de 25 anos, sustenta. “Não dá para fazer tudo de uma só vez”, afirma ele, ao ser questionado entre a dicotomia de se armar contra a Rússia e ter de enviar ajuda militar brutal a Kiev. “Eles estão lutando por nós.” A Finlândia tem fornecido apoio, mas até agora só se comprometeu a entregar três dos 100 modelos Leopard-2A4 estocados que possui.
Um efeito colateral para a indústria europeia é o provável domínio de alguns itens americanos de ponta, como o caça F-35. “Ele será padrão”, diz Pulkkinen, cujo país comprou 64 desses aviões furtivos ao radar.
Acerca da unificação operacional das Forças Aéreas dos quatro países nórdicos, anunciada em março, o secretário diz que o movimento é algo natural. Ele não sabe, no entanto, como isso será inserido no contexto da Otan —Noruega e Dinamarca já fazem parte da aliança, e os suecos estão na fila. “Talvez tenhamos sistemas de bases em rotação por períodos de tempo”, afirmou.
Uma coisa, contudo, ele diz ser certa: a Finlândia não abrigará armas nucleares da Otan. “Não é nem do interesse da aliança” fazer tal sinalização, “ainda que os russos tenham em Kaliningrado [encrave no Báltico] e vão colocar na Belarus”.
A política interna impediria tal movimento, mas Pulkkinen afirma que a mudança de governo em curso, com a derrota da centro-esquerda para a centro-direita no pleito do último dia 2, não altera o rumo da política de segurança. “Nada vai mudar, não há esse risco.”