Para ela, seu papel como pioneira é inspirar outras pessoas e abrir caminho para que as novas gerações possam ir mais longe.
Por Folhapress
Victoria Kolakowski, primeira pessoa trans a chegar ao cargo de juiz nos EUA, gostaria de avançar rumo a posições mais altas no Judiciário, mas avalia ter poucas chances para tal. Para ela, seu papel como pioneira é inspirar outras pessoas e abrir caminho para que as novas gerações possam ir mais longe.
“Este pode ser o meu papel: ajudar os próximos a chegarem lá e não terem de encarar os desafios que eu encarei. É difícil construir um currículo quando portas são fechadas ao longo da carreira”, diz ela, em entrevista à reportagem, por videochamada. Kolakowski, 59, foi eleita desembargadora no condado de Alameda, na Califórnia, em 2010, e está no cargo desde então. Lá, parte dos juízes é escolhida por voto popular.
A magistrada participa, nesta quarta-feira (30), de um debate virtual da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil) sobre o papel do Judiciário na proteção da população LGBT. Na entrevista a seguir, ela lembra os desafios que enfrentou na carreira, aponta como ampliar o acesso à Justiça e comenta o desafio de conciliar liberdade religiosa com outros direitos, como a busca pela felicidade.
PERGUNTA – A senhora cursou faculdades em diversas áreas, como biomedicina, engenharia elétrica, direito e estudos bíblicos. O que a levou a escolher a carreira jurídica?
VICTORIA KOLAKOWSKI – Queria trazer mudanças positivas para o mundo e senti que um bom caminho seria ser advogada, devido ao papel da Justiça em defender os direitos das pessoas. Gosto de estar em uma posição na qual posso ser neutra, ouvir os dois lados e ajudar as pessoas a chegarem a um acordo. Acredito muito em resoluções alternativas. Parte do que faço como juíza é tentar ajudar os lados a se resolverem. Tenho formação técnica em outras áreas, que foram muito interessantes intelectualmente, mas eu me sentia distante das pessoas, de poder fazer o bem a elas.
Estando dentro do sistema Judiciário, tenho oportunidade de ajudar as pessoas a verem coisas que não sabiam. É importante que quem toma as decisões represente todos de uma comunidade. Não temos ninguém como eu em uma posição assim, e tenho como meta ser uma referência para que as pessoas possam ver que nós, transgêneros, podemos ser bem-sucedidos e felizes.
Que desafios no meio jurídico enfrentou por ser trans?
VK – Há uma questão sempre presente quando se é minoria: se alguém tem um problema com você, a questão é comigo em si ou só porque sou transgênero? As pessoas muitas vezes têm pensamentos negativos sobre pessoas trans, questionam sua capacidade, fazem você duvidar de si mesma. Fiz a transição em 1989, no último semestre da universidade de direito. Depois disso, passei a ser “eu” em tempo integral. Em seguida, inscrevi-me para o exame da Bar Association [equivalente à OAB no Brasil] e fui impedida de fazer a prova por ser trans. Questionei a decisão, consegui fazer o teste, passei e me tornei advogada. E fiz a cirurgia de confirmação de gênero em 1992. Mas pensar sobre isso me faz me sentir velha.
De modo geral, ser um juiz LGBT tem se tornado mais fácil?
VK – Provavelmente sim. Em muitos lugares, está se tornando mais e mais fácil, e estou certa de que há lugares onde é muito desconfortável ainda. Estamos vendo mais pessoas fora [do armário] –e confortáveis em estar fora. E vemos muitas pessoas não LGBT dando apoio público a colegas LGBT. Sempre houve juízes LGBT, só que frequentemente eles não falavam disso. Muitos juízes não se sentem à vontade para falar sobre suas vidas pessoais. Mas, via internet, podemos nos conectar. Fui presidente da Associação Internacional de Juízes LGBT. Sempre que descobrimos um juiz LGBT no mundo, o contatamos e perguntamos se ele quer fazer parte da nossa associação. Temos pessoas de 15 países em nossa lista, mas infelizmente ainda nenhum do Brasil.
Há grupos nos EUA que tentam mudar leis em torno de temas como aborto e casamento entre pessoas do mesmo sexo. Como vê esses processos?
VK – A liberdade religiosa é como um DNA dos Estados Unidos. Por outro lado, também acreditamos em direitos como a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Esses objetivos elevados nem sempre são cumpridos. Algumas vezes, ao longo do tempo, a visão sobre eles foi estreita. Conforme o tempo avança, passamos a ver coisas que não víamos antes, como os direitos LGBT.
Temos de descobrir como manter o respeito à dignidade de todos, incluindo LGBTs e pessoas cujas visões religiosas as deixam desconfortáveis com pessoas como eu. O grande desafio que encaramos nos EUA, e acredito que também no Brasil, é descobrir como viver juntos, em uma sociedade moderna. Como fazer com que as pessoas possam praticar livremente sua religião e tratar outras pessoas com dignidade. Espero que possamos resolver essas questões e, ao mesmo tempo, respeitar a autonomia e a integridade individual, sem interferir em crenças nem forçar ninguém a agir de modo contrário ao que acredita.
Como os tribunais podem melhorar o acesso à Justiça?
VK – Na Califórnia, estamos trabalhando na questão do idioma, colocando avisos em diferentes línguas. Na área criminal, oferecemos defensores públicos na maioria dos lugares, mas nem sempre há o mesmo na área civil. Estamos trabalhando duro para treinar mediadores voluntários, para ajudar as partes a negociar soluções. Voluntários também ajudam as pessoas a encontrar formulários, a preenchê-los e a indicar onde obter mais ajuda. Faço parte de um grupo de ajuda. Criamos um site com todos os tipos de recursos em um mapa, de modo que a pessoa possa ver rapidamente quais há em sua região.
Tem planos de buscar vagas em cortes superiores?
VK – É um processo complicado. Em tribunais federais, os cargos são indicados pelo presidente e confirmados pelo Senado dos EUA. Nossos políticos tornariam isso difícil para alguém como eu. Tenho esperança, certamente tenho interesse, mas acho que o progresso para pessoas transgênero nos tribunais é lento. Os tribunais são o fim de uma longa jornada em uma profissão na qual é difícil chegar tendo sido transgênero no passado. Eu não tive necessariamente as mesmas oportunidades que outras pessoas tiveram para pegar experiência em certas áreas, o que me coloca em certa desvantagem. É difícil construir um currículo quando portas foram fechadas antes. Então, posso não estar em posição para dar esse próximo passo. Nesta manhã, minha esposa me disse que às vezes ser um pioneiro significa abrir o caminho para a próxima geração ser bem-sucedida. Esse pode ser o meu papel: ajudar os próximos a chegarem lá e não terem de encarar os desafios que eu encarei. Mas se alguém quiser me indicar para uma corte superior, estou disponível.
Teria um conselho para um(a) jovem trans que sonha em ser juiz?
VK – Acreditar em você mesmo. Tive de ser honesta sobre quem eu era. Sentia como se eu mentisse toda vez que entrava em uma sala antes [de mudar de gênero], porque eu estava fingindo ser outra pessoa. Foi libertador ser capaz de ser eu mesma. E eu posso ter fechado algumas portas ao fazer isso, mas eu tenho sido mais feliz apesar de tudo. Não é uma jornada fácil, mesmo agora, para pessoas transgênero. Uma das razões para o meu sucesso foi estar cercada de pessoas que me amam e se preocupam comigo. Sugiro que as pessoas encontrem outras para estar por perto e dar apoio. Pode ser um parceiro, podem ser amigos, familiares, colegas. Encontrar pessoas que vão estar ali quando ficar difícil, porque vai ficar difícil. Não é uma jornada para se fazer só.
Raio-x
Victoria Kolakowski, 59
Nascida em Nova York, formou-se em direito no Paul M. Hebert Law Center, na Louisiana, em 1989, e trabalhou por duas décadas como advogada. Em 2010, foi eleita desembargadora no condado de Alameda, na Califórnia, com 51% dos votos. Foi presidente da Associação Internacional de Juízes LGBT entre 2015 e 2017. Atualmente, também dá aulas de direito na Universidade de San Francisco.