Guerra na Ucrânia pode levar até 13,1 milhões de pessoas ao mapa da fome, aponta relatório da Fao

Representante da organização no Brasil, Rafael Zavala, aponta que efeitos do conflito podem ser ainda piores se infraestrutura portuária for comprometida

Agricultores ucranianos misturam grãos de cevada e trigo após a colheita na região de Odesa, no sul da Ucrânia. Foto: EFE – 23/06/2022

Por Estadão 

A Guerra na Ucrânia pode levar até 13,1 milhões de pessoas a enfrentar a fome em 2022, segundo novas projeções da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (Fao). Mesmo que o conflito no Leste Europeu represente apenas um “choque moderado”, a estimativa da organização é de que pelo menos 7,6 milhões de pessoas devem entrar no mapa da fome em decorrência do conflito.

Os cenários projetados no relatório sobre o Estado de Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (Sofi), divulgado nesta quarta-feira, 6, podem ser ainda piores do que o previsto, de acordo com o representante da Fao no Brasil, Rafael Zavala. Em entrevista ao Estadão, Zavala afirmou que uma situação “ainda mais grave” pode acontecer, a depender da extensão dos danos do conflito.

“Podemos ter cenários ainda mais graves se houver danos na infraestrutura de portos importantes para a saída das exportações desses dois países no Mar Negro. A Ucrânia e a Rússia são dois grandes produtores de cereais, produzem 30% das exportações mundiais de trigo, além disso, a Rússia é um dos principais produtores mundiais de fertilizantes. Sem ele, é quase impossível manter a produção”, afirmou.

Em suas primeiras linhas, o relatório aponta que o mundo segue na “direção errada” para acabar com a fome, a insegurança alimentar e todas as formas de má-nutrição nos próximos oito anos – uma das metas assumidas pela comunidade internacional em 2015, no acordo conhecido como Agenda 2030. Segundo os números apresentados pela Fao, entre 702 e 828 milhões de pessoas foram afetadas pela fome em 2021, e 8% da população mundial deve estar nesta situação em 2030, o mesmo porcentual de quando o acordo foi assinado.

Zavala admitiu que a perspectiva de alcançar a meta no prazo “não é animadora”, e que certas partes do mundo passam atualmente pelo que a Fao classifica como uma “tempestade perfeita” para a insegurança alimentar.

“Existem quatro principais causas da fome: conflitos armados, choques climáticos, choques econômicos e choques sanitários, e atualmente estes quatro fatores estão acontecendo ao mesmo tempo em alguns lugares do mundo”.

Entrevista com Rafael Zavala, representante da Fao no Brasil

Nas primeiras linhas, o relatório afirma que o mundo caminha na direção errada para a erradicação da fome, má-nutrição e insegurança alimentar, alguns dos objetivos traçados na Agenda 2030. Há oito anos do prazo final, ainda é viável uma correção de rumo que permita atingir essa meta?

A perspectiva de alcançar fome zero até 2030 não é animadora. As projeções mundiais são de que cerca de 670 milhões de pessoas ainda enfrentarão fome em 2030 – 8% da população mundial–, o mesmo que em 2015, quando a Agenda 2030 foi lançada. Estamos vivendo um momento diferente de qualquer outro na história, com desigualdades crescentes principalmente em países que sofreram muito com a pandemia de covid-19, não conseguiram se recuperar economicamente, e que também passaram a enfrentar os impactos da guerra da Rússia contra a Ucrânia.

É importante destacar que existem quatro principais causas da fome: conflitos armados, choques climáticos, choques econômicos e choques sanitários, e atualmente estes quatro fatores estão acontecendo ao mesmo tempo em alguns lugares do mundo. É o que a FAO chama de “tempestade perfeita” para a insegurança alimentar. Um exemplo é a Índia, um entre os quatro maiores produtores de trigo, que neste ano chegou a atingir as temperaturas mais altas dos últimos 100 anos nas zonas produtoras de trigo, o que pode acarretar danos na colheita.

É um cenário muito difícil, e depende de muitos fatores externos para que os países consigam voltar ao rumo de atingir a meta, mas cabe ressaltar que acreditamos que no Brasil é factível alcançar uma agricultura sustentável, sem desmatamento, neutra em carbono, que seja capaz de alimentar o mundo e alimentar um país com fome zero.

O representante da Fao no Brasil, Rafael Zavala, admitiu que há pessimismo quanto à meta do mundo atingir um patamar de fome zero até 2030. 

Como o cenário geopolítico hostil atual, com países se fechando em alianças restritas e com uma guerra em curso na Europa, pesa nas projeções para 2023? Há algum indicador que passe otimismo de alguma melhora?

Em relação aos impactos da guerra na Ucrânia, algumas simulações do relatório O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo (Sofi) mostram que em um cenário de choque moderado, o número de pessoas com fome no mundo em 2022 aumentaria em 7,6 milhões de pessoas, enquanto esse aumento seria de 13,1 milhões de pessoas se o cenário for de choque mais severo. Nesse caso, o que a Fao pede é que os governos reforcem seus programas de proteção social até que todas as pessoas consigam se recuperar pelo menos aos níveis de renda que tinham antes.

No caso dos impactos da guerra da Rússia contra a Ucrânia, podemos ter cenários ainda mais graves se danos na infraestrutura de portos importantes para a saída das exportações desses dois países no Mar Negro. A Ucrânia e a Rússia são dois grandes produtores de cereais, produzem 30% das exportações mundiais de trigo, além disso, a Rússia é um dos principais produtores mundiais de fertilizantes. Sem ele, é quase impossível manter a produção. Neste momento, no porto de Odessa, na Ucrânia, há muitos navios cargueiros cheios de trigos e fertilizantes parados pelo conflito.

Mesmo com o enfraquecimento da pandemia de covid-19, os índices de segurança alimentar pioraram mais uma vez, com entre 702 e 828 milhões de pessoas sendo afetadas pela fome em 2021. O que explica o aumento contínuo deste indicador desde o início da pandemia e, mais especificamente, neste ano?

O grande problema é que a pandemia de covid-19 gerou uma grave crise econômica que interferiu diretamente na capacidade das pessoas de adquirir alimentos em quantidade suficiente e com qualidade nutricional. Se tomarmos a região da América Latina como exemplo, veremos que o problema da fome não acontece por falta de alimentos, já que somos 650 milhões e produzimos o suficiente para 1.3 bilhões de pessoas se alimentarem–, mas sim por falta de renda para adquiri-los. Ou seja, é um problema gerado pela pobreza e desigualdade, e essa situação acaba refletindo no aumento dos números.

Um outro estudo da Fao também mostra que os países da América Latina e do Caribe crescerão apenas 2,5% em 2022 e 2023. Por um lado, o menor crescimento fará com que a região perca participação na economia global. Por outro lado, temos a inflação estimada para 2022 na América Latina e no Caribe em 5,7% para economias avançadas, como a do Brasil, e 8% para economias emergentes. Menor crescimento e renda da população, e maior inflação e aumento dos preços dos alimentos é uma conta que não fecha, e por isso ainda podemos ver este aumento da fome.

Por que a América Latina e o Caribe segue sendo a região mais cara para se alimentar de maneira saudável? Que características estão presentes aqui que fazem isso acontecer e como mudar esse cenário?

Este índice é puxado principalmente pelo Caribe. Se separarmos os dados da América Latina e do Caribe, veremos que cerca de 14 países importam alimentos no Caribe, o que faz com que estejam entre os alimentos mais caros do mundo. Os países insulares (ilhas) dependem de uma alta importação de alimentos, e por isso se revertem em alimentações mais caras. Um outro ponto é que na América Latina, em países como Colômbia, Equador e México, os alimentos são distribuídos de forma desorganizada. Eles percorrem longas distâncias quando deveriam organizados de uma forma mais pertinente e próxima. O que falta é uma governança dos sistemas alimentares para favorecer os circuitos curtos.

No caso específico do Brasil, o relatório indica que o número de pessoas incapazes de manter uma alimentação saudável saltou de 37 milhões em 2019 para 40,4 milhões em 2020. O que justifica esse aumento acentuado no país? Pode-se dizer que a redução da insegurança alimentar foi uma prioridade na agenda dos últimos governos brasileiros?

O que justifica esse aumento é justamente o que explicamos antes: as pessoas sofreram de forma desproporcional com os impactos da crise econômica derivada da pandemia de covid-19. Mesmo com o auxílio emergencial oferecido pelo Governo, muitas famílias perderam seus empregos ou ficaram impossibilitadas de trabalhar no mercado informal e foram levadas à situação de extrema pobreza. Como resultado, a perda do poder de compra impactou diretamente o acesso destas pessoas a alimentos.

Há alguns anos, principalmente antes da pandemia, nós tínhamos no Brasil uma realidade diferente de insegurança alimentar no país. Acho que o mais importante agora é olharmos para todos os quatro fatores (conflitos armados, choques climáticos, choques econômicos e choques sanitários) que enfrentamos, e traçarmos um plano para o futuro com comprometimento de todos os atores da cadeia, incluindo governos a nível federal, estadual e municipal, sociedade civil, setor privado, entre outros. O Brasil tem programas importantes de proteção social como o Auxílio Brasil, mas eles precisam ser ampliados. Será realmente difícil acabar com a fome, mas a partir de experiências anteriores, acreditamos que o país tem as ferramentas e conhecimento necessários para alcançar este objetivo.

Que mecanismos e políticas os Estados têm para frear o avanço da insegurança alimentar, especialmente agora que esses problemas foram agravados pela pandemia?

Além das políticas nos Estados, o país também conta com políticas a nível municipal que promovem os sistemas agroalimentares de circuito curto, e acredito que este é um ponto chave para o sucesso das políticas de segurança alimentar.

Considerando a perda de renda e o aumento do custo dos alimentos, que estratégias têm se mostrado globalmente eficazes para auxiliar no combate à fome e à insegurança alimentar?

Podemos citar os programas de alimentação escolar, uma vez que eles garantem alimentos aos estudantes que, em geral, representam cerca de 20% das populações dos países. Com a queda na renda das famílias, a elevação no custo dos alimentos e o desemprego em alta, os programas de alimentação escolar fornecem alimentos que contribuem para a segurança alimentar de milhões de famílias na região da América Latina e no Caribe, onde essas políticas atendem a cerca de 85 milhões de estudantes. Quando esses programas são vinculados a compras públicas institucionais, eles adquirem ainda o papel de fomentar as economias locais gerando renda para agricultores que comercializam suas produções para as escolas. Isso também contribui para a segurança alimentar e o combate à fome no campo, que também é um problema grave a ser combatido.

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