Servidora do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH) desmente primeira-dama e afirma que o administrador do Palácio da Alvorada confirmou que “a caixa com as joias já estava na posse da primeira-dama”. Michelle tem negado ter conhecimento sobre as joias
Estadão
BRASÍLIA – A então primeira-dama Michelle Bolsonaro recebeu em mãos, no fim do ano passado, o segundo kit de joias enviado pelo governo da Arábia Saudita e que entrou ilegalmente no Brasil. O conjunto foi entregue a ela no dia 29 de novembro de 2022, no Palácio da Alvorada, residência oficial dos presidentes da República, e conferido pessoalmente pelo então presidente Jair Bolsonaro.
O Estadão apurou que essas informações já estão em poder da Polícia Federal, no âmbito do inquérito que apura o caso das joias. Os detalhes foram narrados aos delegados em um depoimento prestado por uma funcionária do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH) que atuava no setor durante a gestão Bolsonaro. Esse departamento presta serviços ao Gabinete Pessoal da Presidência da República e é responsável pela recepção e triagem dos presentes oficiais.
O segundo kit de joias chegou ao Brasil pelas mãos da comitiva do então ministro de Minas e Energia (MME), Bento Albuquerque, em outubro de 2021, e entrou ilegalmente no País, burlando a Receita Federal. O estojo de cinco itens inclui um relógio da marca Chopard que custa cerca de R$ 800 mil. O modelo suíço, conhecido como L.U.C. Tourbillon Qualité Fleurier Fairmined, teve apenas 25 unidades produzidas em todo o mundo. As outras quatro joias são uma caneta, um anel, um par de abotoaduras e um rosário, todos em ouro cravejado de diamantes.
Estimativa iniciais apontam que o valor desse kit ultrapassa facilmente a cifra de R$ 1 milhão. À Polícia Federal, o Departamento de Documentação Histórica declarou que o conjunto, quando despachado para o Palácio da Alvorada, chegou a ser estimado em cerca de US$ 500 mil, o que equivale a R$ 2,5 milhões.
Desde que o escândalo foi revelado pelo Estadão em 3 de março, Michelle tem negado conhecimento sobre as joias presenteadas pelos sauditas. As revelações colocam a ex-primeira-dama diretamente dentro do caso e mostram que não era apenas Bolsonaro que tinha conhecimento dos presentes. A reportagem procurou a assessoria de Michelle Bolsonaro e aguarda um posicionamento.
O Estadão apurou detalhes do que a funcionária do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica relatou à PF sobre a entrega desse segundo pacote de joias a Michelle Bolsonaro e o ex-presidente. Segundo a servidora, em novembro do ano passado, ou seja, mais de um ano após a entrada ilegal do kit no Brasil, o coordenador-geral do GADH, Erick Moutinho Borges, informou a ela que chegaria ao departamento o conjunto com as joias para ser incorporado ao acervo do então presidente Jair Bolsonaro. O GADH fica localizado no subsolo do Palácio do Planalto.
A caixa trazida por assessores do Ministério de Minas e Energia foi recebida pela funcionária, além de seu chefe Erick Moutinho Borges e o museólogo Raniel Fernandes. Naquele momento, foi informado pelos funcionários do MME que Bolsonaro já tinha visualizado o presente. Foi quando os funcionários fizeram uma pesquisa para ter uma avaliação, ainda que informal, dos valores das joias. Após checarem as avaliações, o chefe do GADH à época, Marcelo Vieira, informou que, por razões de segurança, o conjunto deveria ser entregue ao Palácio da Alvorada.
A partir deste momento, conforme relatou a funcionária, um servidor do Alvorada foi até o Palácio do Planalto para buscar a caixa com as joias. Momentos depois, então, o administrador do Alvorada, responsável por gerenciar a residência oficial no governo Bolsonaro, entrou em contato diretamente com a servidora. Tratava-se do pastor Francisco de Assis Castelo Branco, braço-direito de Michelle e que atuava como um “síndico” da residência oficial. Em seu contato com a funcionária, Castelo Branco foi claro, “informando que a caixa com as joias já estava na posse da primeira-dama, Michelle Bolsonaro”, conforme a funcionária declarou à PF.
Até agora, a única menção direta feita ao nome de Michelle envolvendo o escândalo das joias partiu do então ministro Bento Albuquerque. Em outubro de 2021, quando sua comitiva tentou entrar ilegalmente com as joias no Brasil e teve um de seus assessores parados na alfândega de Guarulhos, Albuquerque, que já tinha passado pela área restrita com a segunda caixa de joias, retornou ao local para tentar liberar o conjunto de diamantes que os auditores encontraram na bagagem de seu assessor. Naquela ocasião, ele foi claro em dizer que se tratava de um presente para Michelle. Não conseguiu liberar os itens, mas levou consigo a segundo caixa de joias sem comunicar a fiscalização.
No dia 3 de março, em entrevista ao Estadão, Albuquerque voltou a repetir que se tratava de um presente para a ex-primeira-dama. Em seu depoimento à PF, porém, o almirante tentou desqualificar o que já tinha dito e repetido, afirmando que fez uma declaração genérica, por se tratar de itens femininos e de um presente para o governo brasileiro.
A reportagem teve acesso a documentos oficiais que comprovam que o pacote foi entregue no Palácio da Alvorada. O recibo indicando que Bolsonaro recebeu as joias de diamantes foi assinado pelo funcionário Rodrigo Carlos do Santos às 15 horas e 50 minutos do dia 29 de novembro de 2022. O papel da Documentação Histórica do Palácio do Planalto traz um item no qual questiona se o item foi visualizado por Bolsonaro. A resposta: “sim”.
Presentes já tinham cadastro prévio, antes de chegarem ao Brasil
A funcionária do Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH) também relatou à PF outro fato inusual que costuma envolver a incorporação de presentes oficiais e que aconteceu no caso das joias árabes. Em seu relato à PF, a servidora revelou que, em meados de outubro de 2021, quando nenhuma comitiva ou presente tinham chegado ao Brasil – a comitiva de Bento Albuquerque desembarcaria em Guarulhos em 26 de outubro – foi aberto um processo no Sistema Eletrônico de Informações (SEI) informando que o MME enviaria um presente ao presidente Jair Bolsonaro e que se tratava de um “cavalo de ouro”. Não havia, naquele momento, nenhuma menção a qualquer conjunto de joias.
O que veio a se revelar depois, durante a abordagem dos auditores da Receita, é que a comitiva do MME trazia, sim, a estátua de um cavalo de ouro -a qual teve, inclusive, as suas patas quebradas durante o transporte aéreo -, mas que, junto destas, havia duas caixas de presentes estimados em cerca de R$ 18 milhões, se somadas.
À Polícia Federal, a funcionária do GADH disse que já atuava naquele departamento há um ano e que nunca havia se deparado com uma situação como aquela, em que um presente é cadastrado antes, com o propósito de “alertar a futura chegada de um presente ao presidente da República”.
A servidores explicou que, normalmente, esses processos são lançados no sistema eletrônico após a chegada dos presentes no País. O cadastro do cavalo de ouro no SEI ficou parado por mais de um ano, já que o bem ficaria retido na Receita Federal com o conjunto de diamantes. O registro só seria acionado de novo em novembro do ano passado, após as eleições, e não para inclusão da estátua dourada que continuava presa na alfândega de Guarulhos, mas para a inclusão do segundo pacote de joias enviadas pelos árabes e que entrou ilegalmente no País.