Maria Celina d’Araújo os fardados cumpriram seus rituais, escolheram seus nomes para indicar ao presidente para chefiá-los e reafirmaram suas posições.
Por Estadão
RIO – Depois que o novo ministro da Defesa, Walter Braga Netto, anunciou os nomes dos novos comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, a historiadora Maria Celina d’Araújo considera que Forças Armadas saíram “melhor na foto” do que o presidente Jair Bolsonaro.
Para ela, os fardados cumpriram seus rituais, escolheram seus nomes para indicar ao presidente para chefiá-los e reafirmaram suas posições. São, porém, lembra ela, as Forças Armadas de sempre, com uma posição privilegiada na sociedade brasileira e, de forma anacrônica, com interferência na política, algo já descartado na Europa e mesmo na América Latina. “Se um militar espirra, a gente fica assustado. Entendeu? No fundo, nós temos um trauma né?”, diz, em conversa com o Estadão.
A pesquisadora considera que as Forças Armadas brasileiras ficarão “distantes do discurso e das fantasias políticas do Bolsonaro”, porque seus comandantes são racionais. “Eles sabem que o custo de intervir (na política) é muito maior do que o custo de ficar como agora”, explica. “Porque estão muito bem. Têm prerrogativas que nunca tiveram: orçamento, salários, boquinhas no governo”. Por isso, descarta a possibilidade de um golpe de Estado, que poderia colocar essa situação que avalia como confortável em risco.
A pesquisadora vê o presidente “comendo na mão do Centrão” e considera que, no choque com as instituições, Bolsonaro “já perdeu”. Também critica a nota de Braga Netto sobre os 57 anos do golpe de 1964, que instituiu uma ditadura militar de 21 anos no Brasil, divulgada nesta quarta, 31. Maria Celina também defende uma reforma na Constituição que retire dos militares o papel de “garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”, inscrito no texto constitucional. “Esse artigo 142 é que dá essa posição confortável aos militares. Eles têm todos os bônus e não têm ônus”, afirma.
A seguir, a entrevista de Maria Celina com o Estadão.
O que as mudanças promovidas pelo presidente Jair Bolsonaro na Defesa e nas Forças Armadas apontam, na sua opinião?
Eu acho vergonhoso que o Brasil esteja há três dias em suspense para saber quem será o novo ministro da Defesa, quem o novo ministro vai nomear como comandante. A gente está numa discussão do tempo dos dinossauros. Eu ligo a televisão, eu vejo qualquer jornal… A discussão é se os militares devem ou não participar da política. Isso é conversa dos anos 40, dos anos 50. Tem 70 anos essa conversa. Está muito claro nas democracias que militar não participa da política. Enfim, a gente não tem que discutir tudo isso de novo. Não vamos nem para a Europa: se a gente olhar a América Latina, vê que (o Brasil) está muito atrás nesse assunto. A gente está nessa discussão bizarra e ainda fica assustado, se um militar espirra, a gente fica assustado. Entendeu? No fundo, nós temos um trauma né? Um trauma militar, e a gente acaba dando aos militares muito poder simbólico mesmo.
O que a ação recente do presidente Bolsonaro na área militar pode gerar daqui para frente?
As Forças Armadas vão continuar tendo o seu papel institucional, vão se manter distantes do discurso e das fantasias políticas do Bolsonaro. E vão fazer isso porque são racionais. Aqueles comandantes são racionais. Eles sabem que o custo de intervir é muito maior do que o custo de ficar como agora. Porque estão muito bem. Têm prerrogativas que nunca tiveram: orçamento, salários, boquinhas no governo. Os salários, a renda está dobrando mensalmente para as sete mil pessoas que estão lá (em cargos civis no Executivo). Então, racionalmente, não têm por que carregar o País nas costas. Quer dizer (pensam): “vamos usufruir das benesses do País”. E vamos fazer isso de uma forma ostensiva, para mostrar que a gente está presente. Então, são parasitas do Estado, usam o poder de veto para parasitar o Estado.
Então a tendência seria uma acomodação entre o presidente e as Forças Armadas?
Eu acho que é uma acomodação. Acomodação porque as Forças Armadas sabem que se elas participarem de um golpe, de algo que vá contra a Constituição, o custo de transgressão é muito alto. A gente vira um pária. Porque todos os nossos acordos internacionais, do Mercosul à OEA, os Brics têm cláusula democrática. Os militares não podem fazer o que quiserem com a Constituição, muito menos Bolsonaro. Os generais são racionais, eles sabem que o custo de participar de uma aventura política é grande para eles e grande para o País. E se sobrar para o País fica ruim para eles. Eu acho que eles estão na melhor situação do mundo. Não têm o custo de governar e podem usufruir do poder. E ainda são considerados por alguns jornalistas um fator moderador para frear Bolsonaro. Eu acho isso um erro de interpretação, acho que quem está freando as aventuras alucinadas de Bolsonaro é o STF, o Congresso Nacional. Não são as Forças Armadas.
Não ficam algumas sequelas desse processo? Porque o presidente demitiu a cúpula Militar de uma forma abrupta…
Pode ficar uma sequela, mas no saldo total a corporação ficou muito bem. A corporação se ajustou, cumpriu os seus rituais, escolheu os seus nomes e reafirmou suas posições. E aí vou para a nota do general (Braga Netto), que é completamente anacrônica. Primeiro. a justificativa do golpe, que o comunismo (em 1964) estava tomando conta do País… Não estava, não tinha comunista para isso. Havia comunistas sim, mas não tantos nem tão eficientes para tomar o poder. E agora mantêm essa posição superior, essa preeminência das Forças Armadas como garantidoras da harmonia. Tem que haver uma reforma constitucional, esse artigo 142 tem que mudar. Esse artigo é que dá essa posição confortável aos militares. Eles têm todos os bônus e não têm ônus.
Quem saiu melhor desse episódio, Bolsonaro ou os militares?
Do ponto de vista do andamento da carruagem, de uma perspectiva de ordenamento político, claro que as Forças Armadas saíram melhor na foto. Agora, esse sair melhor não significa que mudaram. É isso que quero falar. Elas continuam sendo as Forças Armadas de sempre, as Forças Armadas que querem ter o comando da constitucionalidade do País. Querem ter orçamentos especiais, vantagens pecuniárias… Então, eles saíram melhor na foto, sim, mas não mudaram. O enquadramento da foto hoje favoreceu, mas eles são os mesmos.
Aonde o presidente Bolsonaro quer chegar com essa mudança?
Ele quer produzir a desordem. Ele se transformou em político porque produzia a desordem no Exército. Dali, ele foi para vida política. E conseguiu seduzir os militares para apoiá-lo. Mas o objetivo dele continua sendo conseguir mais salários para a corporação e produzir instabilidade. Ele continua o mesmo. Produzir a desordem, botar milícias na rua, botar policiais na rua, insuflar motins para produzir uma situação que leve a uma convulsão social. E isso é muito sério, porque na situação que a gente está vivendo, de pandemia, é muito grave. Daqui a pouco as pessoas podem ir para rua por outras razões. Não por causa do Bolsonaro, mas por causa do estômago.
Isso abriria caminho para uma solução autoritária?
Ele quer um País para ele. Ele é uma pessoa extremamente insegura. Está sempre falando “o meu País”, “o meu povo”, “o meu Exército”, “sou eu que mando”, “sou eu que presido”. Fala o tempo todo desse jeito, é uma insegurança. Claro que quer todo o poder para ele. Mas para fazer o quê? Para prender metade da população? É completamente inexequível.
Foi dito que ele quer as Forças Armadas mais próximas dele. Seria para reforçar a imagem de militar, que cultiva?
Ele quer as Forças Armadas mais perto dele porque quer apoio das Forças Armadas para combater, para fazer estado de sítio… Enfim, para fazer uma GLO contra certos governadores. Agora, lembre o seguinte: ele é mau militar. Ele saiu do Exército e ficou anos que não podia entrar em um quartel, porque era persona non grata. Naquele momento de crise de 2018, de quem pode derrotar o PT, de 2017, 2018, ele acabou sendo a tábua de salvação contra o “mal maior” para os militares. E aí os militares se apegaram a ele não por respeito, porque respeito nunca houve por Bolsonaro. Ele se tornou presidente, mas não tem o respeito da corporação. Tem a admiração de alguns militares como presidente. Pela ideologia, pelas ideias e pela ação virulenta que pratica.
Esse apoio militar pode mudar, em razão da atuação na pandemia e da crise com as Forças Armadas nesse episódio recente?
Por enquanto, ele está comando na mão do Centrão, bonitinho, caladinho, fez tudo que o Centrão pedia. E por enquanto está não perdendo, mas está em uma queda de braço com as Forças Armadas. Não fez exatamente o que queria. Então, é um loser (perdedor) agora. Está cativo, é prisioneiro do Centrão. Quer ter o Exército do lado dele porque o Exército tem armas, é mais forte que o Centrão. Mas é o que eu digo: o Exército é racional, aquelas pessoas são racionais. Aquelas pessoas não vão entrar em aventuras para acabar com a bela vida que têm. Uma boa vida, né?
Essa relação de Bolsonaro com as Forças Armadas tende a continuar com algum grau de tensão, na sua avaliação?
Vai continuar tendo enquanto ele for presidente. Agora, acho também que as Forças Armadas vão mudar muito pouco. As Forças Armadas continuam sendo educadas da mesma forma que são educadas há 30, 40 anos. Continuam aprendendo aquelas coisas da nota do Braga Netto… Aquilo é ensinado na escola, aquilo é enfiado na cabeça deles. Ou seja, eles não têm nenhuma visão… Eles não têm nenhuma visão razoável sobre o que é a história, uma visão razoável de que o mundo muda, as pessoas mudam, e os fatos podem ser rearrumados de forma diferente. Continuam na mesma batida.
Como fica a tensão de Bolsonaro com as instituições?
Eu acho que o Congresso, o STF e o Alto Comando jantam o Bolsonaro. Ele não tem essa força…As instituições estão mais fortes. Não vejo nenhum ministro defendendo essas coisas. Então, a própria Justiça está mais ativa, está mais atenta. O Congresso idem. Então, acho que o que vai haver agora é muito deixa-disso. As Forças Armadas… aquilo deve estar pegando fogo lá dentro. Mas como se passa intramuros, a gente nunca vai saber. Então, acho que o futuro, a gente está assim em sobressalto, mas eu tenho uma convicção dentro de mim que o Bolsonaro vai perder essa parada. Ele já perdeu.
Então, não há perigo para as instituições? Um golpe, como se teme?
Não, um golpe militar, não. Porque o golpe ideal para ele (Bolsonaro) seria uma mudança na Constituição que permitisse que ele tivesse mais poder, que ele pudesse fazer decreto-lei… E o Congresso não vai querer isso. Certo? O Congresso não quer isso, porque os amigos deles, governadores, prefeitos… Essas pessoas não querem intervenção lá, querem continuar sua carreira política.
Mas um golpe de força, com as Forças Armadas e as Polícias Militares, não pode ocorrer?
Não. Eu acho que com as Forças Armadas são racionais e são oportunistas, no sentido do senso de oportunidade… Elas não vão entrar em uma aventura dessas de rasgar a Constituição. E vamos ser o quê, vamos ser uma Tailândia? Um Mianmar? Acho que é muito remota essa possibilidade.
Não haveria um perigo nas polícias militares, que Bolsonaro vive cortejando?
Só que as polícias militares não têm a organicidade que têm as Forças Armadas. Elas são estaduais, não têm uma organicidade nacional. Então, acho que é mais complicado uma solução nacional com as polícias militares. Seria o sonho do Bolsonaro. Acho que é uma possibilidade, porque são hoje talvez mais passíveis de um impulso, porque não têm aquela estrutura pesada do Exército, de obediência. Mas acho uma ação coordenada das polícias militares muito difícil.