Celsinho da Vila Vintém fundou facção criminosa e fugiu duas vezes da cadeia, mas cumpriu 25 anos de prisão até ser solto aos 61, contrariando máxima de que bandidos morrem cedo
O GLOBO
Celsinho da Vila Vintém era o bandido mais procurado do Rio quando foi preso na manhã do dia 4 de janeiro de 1990. Então um líder do Comando Vermelho, chefe do tráfico de drogas em grande parte da Zona Oeste, ele foi encontrado escondido num sítio em Papucaia, Cachoeiras de Macacu, na Região Serrana do estado. O governo do Rio reuniu toda a imprensa para se gabar da captura, após meses levando dribles de um criminoso que ainda daria muita dor de cabeça às autoridades.
Aos 28 anosde idade, Celsinho já tinha ficha criminal extensa, mas estava só começando nessa caminhada. Na década de 1990, o bandido se tornou um dos fundadores da facção Amigos dos Amigos (ADA), após um racha na cúpula Comando Vermelho. Investigado também por cooptar policiais para fazer sua segurança, participar de diversos homicídios e de liderar uma quadrilha de sequestradores, ele foi condenado a 18 anos de prisão por tráfico e associação para o tráfico.
Celsinho chacoalhou a cúpula da segurança por fugir da cadeia duas vezes sem disparar tiros, enganando autoridades com ajuda de agentes penitenciários. Numa dessas, um delegado disse à imprensa que ele só poderia ter saído da prisão sem apoio de carceireiros “se fosse um passarinho”. No total, porém, o criminoso passou mais de 25 de seus 61 anos no xadrez, até ser solto pela Justiça, na última quarta-feira, por força de um habeas corpus. Saiu do presídio garantindo que não vai mais se envolver com atividades ilegais.
Sem reagir à polícia em nenhuma das quatro vezes em que foi preso, o bandido da Vila Vintém contraria a máxima de que traficantes morrem antes da maturidade. Mas foi por muito pouco. Em 2002, ele tinha sido capturado (pela quarta vez) quando esteve muito perto de ser executado por Fernandinho Beira-Mar, durante uma rebelião em Bangu I na qual quatro de seus aliados foram assassinados. Até hoje, não se sabe direito o que Celsinho fez para convencer o rival a poupá-lo.
Antes daquela prisão em 1990, as autoridades caçavam Celso Luís Rodrigues havia meses. Em julho do ano anterior, uma operação para prendê-lo reuniu 300 agentes e 80 veículos. Mas, no conjunto residencial da Vila Vintém, em Realengo, a equipe encontrou a casa onde ele estava vazia. Acharam apenas uma conta de luz com o nome de Celsinho em cima da geladeira. Também foram apreendidas armas pesadas e drogas em outros endereços da Zona Oeste ligados ao bandido.
Suspeitou-se da existência de um informante infiltrado que teria avisado o traficante. Mas a verdade é que muita gente estava sabendo da ação. Quando vários repórteres apareceram na sede da Polícia Civil ainda de madrugada, os agentes reunidos ali entenderam que os planos tinham vazado e que eles estavam indo para uma grande “feijoada” (gíria para operações que não levam a prisões).
Quando foi finalmente capturado e levado ao presídio de “segurança máxima” de Bangu 1, Celsinho continuou chefiando o tráfico na Vila Vintém com ajuda de intermediários. Mas não ficaria no xadrez por tanto tempo quanto queriam as autoridades. Em 1994, o traficante conseguiu uma inexplicável transferência para a penitenciária Milton Dias Moreira. Era o primeiro passo de seu plano de fuga.
Na madrugada de 31 de outubro, mesmo com 11 carceireiros de plantão, Celsinho e mais três detentos escaparam sem precisar cavar túnel ou fazer reféns. O então delegado Antônio Hora, da Polinter, teve a certeza de que a fuga foi facilitada pelos agentes. “Não há como fugir dali sem ajuda”, disse ele, ressaltando que seria necessário pular um muro de 12 metros, o equivalente a um prédio de quatro andares, e não foi achada nenhuma corda. “Só se eles viraram passarinhos”.
Foragido, Celsinho era aquele tipo de traficante acusado de todos os males do Rio. Investigadores o apontavam entre líderes de uma quadrilha especializada em sequestros, crime comum nos anos 1990 no Rio. De acordo com um relatório da Secretaria de Segurança Pública, ele tinha a proteção de dez soldados do 14° BPM (Bangu), que usavam carros da polícia para escoltá-lo. O documento dizia ainda que o traficante desfilava com corpos de vítimas na Vila Vintém e teria sido visto com a cabeça de uma delas na rua central da comunidade.
Em janeiro de 1996, quando o criminoso se preparava para ir ver um show da cantora Alcione na quadra da sua escola de samba, a Mocidade, ele foi encontrado pela polícia numa casa de dois andares no bairro de Padre Miguel. Detido com um policial civil e um militar que estariam fazendo a segurança dele, o traficante ironizou a própria captura: “Vou ter que torcer pra Mocidade de dentro da cadeia”, disse, com os dentes revestidos de ouro. “Mas quem sabe não saio antes do carnaval?”.
Levado a Bangu 1, ele ficou apenas três carnavais na cadeia. Em setembro de 1998, conseguiu transferência para o Hospital Penitenciário Fabio Maciel, alegando que tinha uma bala alojada no antebraço. Ficou lá durante 28 dias sem ter sido operado (nenhum projétil foi localizado nos exames de imagem) e saiu de fininho numa madrugada de outubro. Quatorze médicos e carcereiros foram indiciados pela polícia como cúmplices da fuga, mas a Justiça anulou a ação meses depois.
Celsinho chefiou a ADA durante uma guerra de anos entre a facção, aliada ao Terceiro Comando, e o Comando Vermelho, que tinha entre seus principais líderes o traficante de drogas e armas Fernando Beira-Mar. Muita gente, entre criminosos e inocentes, morreu durante esse conflito. O bandido da Vila Vintém chegou a ser acusado pela Secretaria de Segurança de liderar, pessoalmente, a chacina de 13 pessoas na Favela do Quitungo, na Vila da Penha, uma área de influência do bando rival.
“Ele está mexendo com os brios da polícia. É um traficante quarentão e já passou da hora de ser preso”, disse, em 2001, o então secretário de Segurança, Josias Quintal.
No dia 7 de maio de 2002, após três anos e meio de buscas, a polícia finalmente prendeu Celsinho, numa casa modesta na Vila Vintém. Mais uma vez, o traficante fez pouco caso da sua captura. Abriu o sorriso para a câmeras fotográficas e garantiu, diante da cúpula da Secretaria de Segurança, que continuaria coordenando a venda de drogas a partir da cadeia: “Sou traficante. Sou bandido. Compro meu pozinho, minha maconha, e vendo”, confessou ele durante uma entrevista ao GLOBO. “Mas eu sou um cara devagar. Não dou tiro na polícia. Eu fujo da polícia”.
O criminoso foi levado mais uma vez para Bangu I, que assim virou um imenso barril de pólvora. Na penitenciária de segurança máxima, já estavam Enaldo Pinto de Medeiros, o Uê, também um dos fundadores da ADA, preso desde 1996, e Fernandinho Beira-Mar, chefe do Comando Vermelho, capturado em 2001. Eram três líderes de grandes facções inimigas vivendo no mesmo presídio. Não tinha como dar certo. Seis meses depois, essa bomba relógio explodiu.
No dia 11 de setembro de 2002, Beira-Mar deu início a uma rebelião dentro de Bangu I com o único objetivo de eliminar seus desafetos. Durante 23 horas de terror, enquanto mantinham seis reféns (entre carcereiros e operários) amarrados a botijões de gás, o bandido e seus comparsas destruíram parte do presídio e mataram quatro inimigos do Terceiro Comando e da ADA, entre eles, o traficante Uê, cujo corpo foi encontrado carbonizado dentro da cela que ocupava na galeria D.
Apesar de aliado de Uê e rival de Beira-Mar, Celsinho não foi morto na rebelião. Segundo investigações, o traficante da Vila Vintém aceitou, ou fingiu que aceitou, trocar de facção, passando para o Comando Vermelho. Outra linha de apuração diz que ele prometeu uma grande soma em dinheiro para não ser executado. Fato é que, de um jeito ou de outro, o criminoso permaneceu jurado de morte, já que uma parcela da organização de Beira-Mar não aceitou a suposta mudança de lado. Ou não acreditou.
Nunca ficou claro o acordo que manteve Celsinho vivo quando ele estava nas mãos de Beira-Mar, mas a hipótese de ele ter mudado de lado foi descartada. Investigadores apontaram que Celsinho manteve influência na Vila Vintém, mas, ao longo dos anos seguintes à rebelião, ADA e Terceiro Comando perderam bastante terreno no jogo de forças do tráfico. O nome do traficante praticamente sumiu das páginas policiais. Só apareceu com destaque em reportagens sobre julgamentos e decisões judiciais a respeito dos pedidos de liberdade condicional feitos por sua defesa.
Na última quarta-feira, Celsinho deixou Bangu I após 20 anos ininterruptos de xadrez. Ele obteve a liberdade por força de um habeas corpus garantindo a ele o direito de recorrer em liberdade de uma condenação de 15 anos de prisão por envolvimento numa guerra entre facções pelo controle do tráfico da Rocinha, quando a venda de drogas na favela passou das mãos da ADA para o Comando Vermelho. Ele saiu do presídio fazendo sinal de positivo e conversou com os repórteres na porta.
“A sensação mais gostosa do mundo”, disse ele, com tom de humildade. “Tudo o que eu tinha na vida, eu perdi. Eu não sei o que vou fazer agora, são 20 anos, estou com as duas pernas ruins. Mas ficar tranquilo eu vou, não me envolvo com nada há muitos anos”.