Passa da hora de uma reforma administrativa

É compreensível a indignação pelo aumento dado a servidores públicos. Mas esse sentimento serve melhor ao País se direcionado a uma discussão profunda sobre estrutura estatal

PEC da Transição foi aprovada no Congresso na última quarta, 21 Foto: Pedro França / Agência Senado

Estadão

A concessão de uma série de aumentos salariais para servidores públicos dos Três Poderes, a poucos dias do recesso parlamentar de fim de ano, provocou uma onda de indignação da sociedade. É compreensível. Há uma crise social instalada e o País não passa exatamente por um momento de exuberância econômica que autorize a aprovação desses aumentos pelo Congresso sem que isso cause um profundo mal-estar.

Os salários dos ministros do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, foram majorados pelos congressistas em 18%. Passarão dos atuais R$ 39.293,32 para R$ 46.366,19 – teto constitucional para a remuneração de todo o funcionalismo público, o que torna o efeito cascata inevitável.

Some-se a isso o fato inquestionável de que a imensa maioria dos trabalhadores da iniciativa privada nem sequer pode sonhar com reajustes que recomponham o poder de compra corroído pela inflação, que dirá com aumentos salariais que podem variar entre 37% e 50%, como são os casos dos deputados, senadores, presidente e vice-presidente da República e ministros de Estado.

No entanto, o melhor para o Brasil é que toda essa indignação – justíssima – seja mais bem direcionada e sirva como um ponto de partida para uma discussão mais profunda sobre a estrutura do Estado e os fins a que ele se destina. Decerto não haveria tanta resistência aos aumentos salariais do funcionalismo público se os cidadãos percebessem que em troca de uma alta carga tributária podem contar com o Estado quando precisam dele para resolver alguns de seus problemas.

O caminho mais tentador – e fácil – é canalizar a fúria cívica para a concessão dos aumentos salariais por si só e desqualificar a chamada classe política como uma súcia indistinguível de saqueadores do Tesouro. Trata-se de uma abordagem não apenas errada, como extremamente perigosa.

Errada porque parte de uma premissa infundada. É claro que há uma casta de servidores públicos cobertos por um manto de privilégios que em tudo afronta a própria ideia de República. Mas não se pode tomar uma parte pelo todo e nem tampouco olhar para o serviço público, inclusive para a atividade política, como uma espécie de sacerdócio. Ora, servidores públicos são trabalhadores que devem ser remunerados à altura de suas responsabilidades como quaisquer outros.

A aversão indiscriminada aos políticos e a mera indignação quanto à sua remuneração, além de infrutíferas, são muito perigosas porque abrem uma avenida para aventureiros que fazem da negação da política uma plataforma para chegar a postos de liderança na própria esfera política, usando o sentimento popular como mola propulsora de suas ambições pessoais. O que foi a eleição de um histriônico deputado como Jair Bolsonaro para a Presidência da República se não o resultado dessa apropriação maliciosa e indigna da insatisfação generalizada de uma expressiva parcela de brasileiros?

A discussão sobre o funcionamento do Estado no País tem sido muito rasteira, especialmente contaminada pela mixórdia de opiniões difundidas pelas redes sociais. Em geral, opõe, de um lado, os que defendem um “Estado grande”, intervencionista, indutor do crescimento, e, de outro, os que pugnam por um “Estado mínimo”, que seja capaz apenas de oferecer serviços públicos básicos e garantir um ambiente fértil para os negócios.

Ora, esse debate em torno do tamanho do Estado – e os custos para manutenção de sua estrutura, incluindo o funcionalismo – é menos importante do que discutir o rol de objetivos que o País deve atingir coletivamente. Essa discussão deve ser primordialmente feita no Congresso, por meio de representantes eleitos, sem prejuízo da participação de organizações da sociedade civil, por óbvio, e derivar em uma reforma administrativa, há muito defendida por este jornal, que reflita esse conjunto de aspirações comuns da sociedade.

Mais do que acossar parlamentares pelos aumentos salariais concedidos aos servidores públicos, é preciso que a sociedade pressione o Congresso para dar seguimento a uma reforma administrativa sem a qual o passar dos anos não será nada além de uma sucessão de lamentos – justos, mas inúteis.

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