Plano pode conter crise sob Lula 3, mas é flexível demais
Folha de São Paulo
A pré-estreia do plano fiscal Lula Haddad teve um relativo sucesso de público. Mais difícil é saber do sucesso de crítica ou fazer uma análise.
Não passaram o filme inteiro ou faltam pedaços na sinopse. Imaginem aí um filme em que o vilão é um Arnold Schwarzenegger, que tenta acabar com a vida da Margot Robbie. Não é preciso dar “spoiler”, mas fica estranho se o Schwarzenegger não aparece pelo menos no trailer. A falta de detalhes do plano é exasperante, para ser ameno.
Ainda não dá para saber se o novo limitador de despesas, o “arcabouço fiscal” relaxado, faz sentido no curto prazo (até fins de Lula 3). Pode haver problemas ruins mais adiante. Vai exigir muito aumento de imposto pelo menos até 2025, por aí —esse é o Schwarzenegger.
Isto posto, o primeiro impacto do plano Lula-Haddad é positivo. Permite ao menos projetar o que Lula 3 em tese pretende fazer de despesa e dívida. Mesmo com imprecisões ou flexibilidades excessivas, é melhor do que não haver previsibilidade alguma a não ser a de que a dívida passaria fácil de 90% do PIB.
Quanto ao plano propriamente dito, faltam dados para saber como vai fazer sentido, mesmo durante Lula 3. Isto é, dadas as regras de aumento de despesa, as metas de resultado primário (receita menos despesa) e algumas projeções mais ou menos realistas (otimistas) para a economia, será preciso que o aumento de arrecadação seja maior do que o crescimento do PIB.
O ajuste proposto (transformação de déficit em superávit) é muito agressivo nos primeiros anos.
O ministro Fernando Haddad (Fazenda) disse logo nesta quinta-feira (30) que vai dar um jeito de arrumar uns R$ 100 bilhões ou R$ 150 bilhões extras (algo de 1% a 1,5% do PIB, em dinheiro de hoje). Se arrumar, parece possível chegar ao superávit primário projetado pelo governo, dadas algumas projeções adicionais não muito doidas. Isto é, economia crescendo a 2% e demais receitas crescendo no ritmo do PIB.
Dado este superávit primário de 1% do PIB e outras projeções, a dívida pública pouco ou nada cairá ao longo da próxima década (superávit: receita maior que despesa, desconsiderados gastos com juros).
O que é “projeção realista (otimista)”? Economia crescendo a 2,5% ao ano. Taxa de juro real média da dívida pública (“taxa implícita”) de 3,5% (ora está em 4,9%).
É realista de dizer que a receita vai crescer tanto quanto o PIB? Na média dos últimos 20 anos, deu mais ou menos isso. De um ano para outro, a variação é enorme.
É realista achar que a taxa real de juros será de 3,5% (esse é o custo de financiar a dívida pública)? Difícil, ainda mais se a relação dívida/PIB continuar em uns 76% do PIB por uma década.
Qual o problema de a dívida não cair? Um problema, por exemplo, é que, em caso de nova alta de juros, a dívida aumentará ainda mais. Isto é, a não ser que sobrevenha um esforço radical de corte de despesas ou aumento de receita, que é justamente o nosso problema de agora.
O plano Lula-Haddad tem uma inclinação para o aumento de gasto. Sim, a despesa só pode aumentar, por ano, o equivalente a 70% do aumento da receita anual. De resto, a despesa pode aumentar no máximo 2,5% ao ano. Isto é, mesmo que a receita aumente 3,6% ou mais, há um “teto” de variação de gasto. Mas, mesmo que a receita não cresça nada, a despesa pode aumentar em 0,6%.
Esses limites atenuam o caráter “pró-cíclico” da despesa, mas ainda permitem que tenhamos um efeito Dilma-Cabral: aumento excessivo de gasto em tempos bons, vários deles gastos permanentes, e algum aumento de gasto mesmo em anos ruins (sem aumento de receita). Esses aumentos excepcionais de receita ocorrem durante grandes altas de preços de commodities e crescimento mundial forte, por exemplo. Quando a maré baixa, ficamos pelados. Logo, é possível que tenhamos déficits ruins em anos ruins.
O resultado primário fica a critério do governo. Não há regra para fixa-lo no plano Lula-Haddad (ou não se viu tal regra). Um governo mais consciencioso pode vir a fazer o que é preciso (superávit) a fim de evitar aumentos perturbadores da dívida público. Mas fica a seu critério. Hum.
De qualquer modo, pelo plano Lula-Haddad, o governo pode descumprir a meta de superávit que fixou e deixar o problema para o ano seguinte. Se assim for, a autorização para o aumento de despesa cai de 70% para 50% do aumento da receita. Mas ainda é uma norma solta demais.
Outro problema, mais sútil, é o que o “teto” de Lula, mesmo flexível, tem problemas similares ao do velho e falecido teto de Michel Temer. Algumas despesas vão crescer tanto ou mais do que o PIB (benefícios do INSS, previdenciários e assistenciais). Outras vão crescer no ritmo da receita: despesas obrigatórias em saúde e educação. Outras devem ficar estáveis em relação ao PIB (gastos com servidores).
Dado o limite de aumento de gastos de Lula-Haddad, ainda que flexível, haverá alguma compressão de despesas não obrigatórias, a não ser que se façam revisões profundas do gasto público.
Imagine-se agora que a despesa obrigatória cresceu e que a economia passa por um período fraco, assim como a arrecadação do governo; que o governo não cumpriu a meta de resultado primário do ano anterior; que a dívida pública ainda é grande. Vai fazer o quê? Cortes profundos de gasto, em geral de má qualidade, se feitos de hora para outra?
É um dos problemas que temos agora.
Enfim, o plano e o “arcabouço” Lula-Haddad dependem, pelo menos de início, de um aumento de impostos, seja aumento de alíquotas, criação de tributos, fim de isenções tributárias etc. Vai passar pelo Congresso? Isso não vai complicar a reforma tributária?
O governo ainda tem muito o que explicar.