Terceira reportagem da série ‘Desigualdade – O Brasil tem jeito?’ mostra que prefeitos nunca receberam tanto dinheiro público, mas optam por inchar a máquina ao invés de reduzir desigualdades. Em Araguainha, todo mundo com emprego formal é contratado pela prefeitura
Estadão
Todos os empregados formais de Araguainha trabalham na prefeitura. O que significa que um terço dos mil moradores da pequena cidade de Mato Grosso está pendurado na folha de pagamento do município. Não é um caso isolado. A um ano das eleições municipais, a maioria das cidades brasileiras aumentou suas despesas com a contratação de funcionários.
De 2022 para cá, 4.681 municípios aumentaram os gastos com pessoal no primeiro semestre do ano, o que representa 84% das cidades do País. Esse aumento é crescente. A cada ano, o gasto com folha salarial nas prefeituras sobe. Em 2019, nas vésperas das últimas eleições municipais, a despesa era 46% menor do que atingiu agora.
Os municípios nunca receberam tanto dinheiro do governo federal, mas não têm atacado as principais necessidades da população. Um volume de recursos recorde que poderia reduzir significativamente as desigualdades no País. Mas o que os prefeitos estão fazendo com tanto dinheiro? Investindo em saneamento básico, escolas, saúde? Não. Estão contratando gente.
O Estadão percorreu 2.312 quilômetros, passando por 15 cidades do Distrito Federal, Goiás e Tocantins, para responder por que o País é tão desigual mesmo com tanto dinheiro. Grandes investimentos feitos no passado criaram ilhas de riqueza e bolsões de pobreza em volta, como mostrou a primeira reportagem da série “Desigualdade – O Brasil tem jeito?”.
O prefeito de Araguainha, Francisco Naves (União), admite que o número de funcionários do município cresceu nos últimos 12 meses e está “chegando a 300″. Só nos primeiros meses deste ano, foram R$ 4,1 milhões para bancar os servidores, valor equivalente a 64% de todos os recursos que a prefeitura recebeu do governo federal no período.
A cidade não usa o dinheiro que recebe de Brasília para investir em saúde, educação e melhoria urbana. Araguainha não tem infraestrutura de asfalto, bueiro e calçada, segundo o IBGE. Só 5,5% da população têm esgoto tratado, não existe creche e, nas palavras do próprio prefeito, a única escola está “caindo aos pedaços”.
Também não há previsão de planos de geração de renda. E por que ele contrata gente ao invés de investir na escola? O prefeito alega que já herdou uma prefeitura inchada e admite que vai substituir os que estão se aposentando, perpetuando assim a situação.
É em Araguainha que está o maior buraco aberto por um asteroide na América do Sul. Há mais de 200 milhões de anos, um meteoro caiu ali e formou uma cratera do tamanho equivalente a 140 campos do Maracanã. O governo tinha dinheiro, mas não desenvolveu um projeto para atrair turistas e pesquisadores. “A prefeitura está superlotada de funcionário. Não sobra dinheiro para nada”, diz o prefeito.
A conta do aumento de funcionários deve ficar para o governo federal. O prefeito Francisco Naves avisa que chegará a Brasília no próximo dia 3 de outubro para pedir mais dinheiro à União. Ele fará parte de uma mobilização de quatro mil gestores municipais que alegam problema de caixa e chamam a romaria de “greve”.
A prefeitura está superlotada de funcionário. Não sobra dinheiro para nada
Francisco Naves, prefeito de Araguainha (MT)
A queixa dos prefeitos encobre um dilema. Os municípios gastam cada vez mais dinheiro federal com folha salarial e querem quitar esse valor com recursos federais. Nos primeiros seis meses deste ano, as prefeituras gastaram R$ 208,5 bilhões com servidores públicos, 16% a mais que no mesmo período do ano passado. O valor supera todo o repasse do governo feito para os municípios no semestre, um total de R$ 156 bilhões. Na prática, o gasto com funcionários das prefeituras é tão alto que o repasse da União já nem dá conta de pagar a fatura.
Prefeitura usa 80% dos repasses para a folha de pagamento
A penúria de Araguainha se repete em outros municípios. Em Ouro Verde, Goiás, a diarista Benoir Soares, 45 anos, espera há mais de um ano para fazer uma cirurgia e retirar um cálculo da vesícula, diagnosticado em um exame que fez. Não há unidade de saúde com condições de fazer a cirurgia na cidade, um dos bolsões de desigualdade do Brasil, a 61 quilômetros de Goiânia. “Dizem que essa pedra silenciosa é a perigosa, pode dar crise a qualquer momento”, afirma. “Foi trocando de prefeito e tiraram o hospital que tinha aqui”, diz Benoir.
Além da falta de hospital, a população de Ouro Verde, de quatro mil habitantes, vive com R$ 424 por mês em média. Para a folha de pagamento dos funcionários municipais, no entanto, são gastos R$ 13 milhões por ano, considerando as despesas dos últimos 12 meses até abril de 2023, valor equivalente a 80% dos repasses federais feitos para a cidade no mesmo período. A prefeitura foi procurada, mas não retornou à reportagem.
Enxugar a folha de pessoal é um dilema. Muitos prefeitos devem disputar a reeleição ou tentar eleger aliados para o comando das prefeituras. O que os políticos locais pedem é mais dinheiro para bancar obras e serviços eleitoreiros, além de manter a máquina com servidores, vários deles contratados como meros cabos eleitorais.
“Se continuar desse jeito, ninguém ganha eleição e nem adianta ser candidato”, diz o prefeito da cidade goiana de Jaraguá, Paulo Vitor Avelar (União). Ele também participará da marcha para Brasília. A prefeitura da cidade aumentou os gastos com folha de pagamento em 14% no primeiro semestre do ano, atingindo R$ 43 milhões, enquanto a população ainda convive com um lixão a céu aberto.
O País sustenta sete milhões de empregados na administração municipal atualmente, de acordo com dados da Confederação Nacional dos Municípios (CNM). A organização dos prefeitos estima que menos da metade (44%) sejam profissionais da saúde e da educação. Os municípios alegam que a União tem onerado as prefeituras com pisos salariais, planos de educação e leis em diversas áreas sem repassar dinheiro suficiente para arcar com as despesas. Ainda reclamam que foram proibidos de conceder reajuste salarial durante a pandemia e, agora, precisam compensar seus servidores.
Existe uma completa falta de planejamento, pouco compromisso com arrecadação própria e um discurso populista dos prefeitos
Alisson Diego Batista, professor de Administração da PEC Minas e secretário de Fazenda de Nova Lima (MG)
As mesmas prefeituras que pedem dinheiro do governo federal levam até 30 anos para revisar os próprios impostos municipais, como o IPTU (Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana), de acordo com os tribunais de contas dos Estados.
“É muito cômodo para os municípios simplesmente receber recursos sem fazer o dever de casa”, afirma Alisson Diego Batista, professor de Administração da PUC Minas e secretário de Fazenda da cidade de Nova Lima (MG). “Muitos não cobram os impostos porque isso traz problemas eleitorais. Existe uma completa falta de planejamento, pouco compromisso com arrecadação própria e um discurso populista dos prefeitos.”
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu que nenhuma prefeitura vai receber menos dinheiro do governo federal em 2023, em comparação ao ano passado. É um compromisso de garantir a manutenção do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), repassado pela União para as cidades brasileiras, sem nenhuma perda.
Na prática, mais uma vez o socorro virá da União. Não há, no entanto, nenhuma contrapartida que outros gastos essenciais sejam feitos pelos municípios.
No próximo domingo, 1, a quarta reportagem da série “Desigualdade – O Brasil tem jeito?” vai mostrar as políticas que deram certo no combate à desigualdade.