Resposta de Kirchner às acusações na Argentina é parecida com a de Lula na Lava Jato, diz analista

Vice-presidente acusa Justiça de perseguição política e tenta impugnar processo por supostas ilegalidades; sociólogo compara resposta a do ex-presidente brasileiro

Apoiador de Cristina Kirchner carrega cartaz em apoio à vice-presidente durante protesto na segunda-feira, 22. Foto: Juan Mabromata/ AFP

Por Estadão 

As acusações da Promotoria da Argentina contra a vice-presidente Cristina Kirchner e o pedido de sentença de prisão e anulação dos direitos políticos têm uma repercussão política que se assemelha a um episódio brasileiro recente: o caso Lula e a Lava Jato, segundo a avaliação de um analista político argentino. Na segunda-feira, 22, Kirchner e seus apoiadores consideraram o processo judicial contra ela um “pelotão de fuzilamento midiático-judicial” e acusaram se tratar de uma perseguição. “O melhor exemplo que se toma disso é justamente o Lula”, declarou o sociólogo Carlos de Angelis, professor da Universidade de Buenos Aires (UBA).

De acordo com Angelis, as semelhanças residem principalmente na resposta dos dois líderes aos processos. Assim como Lula, Kirchner acusa a promotoria e juízes de atuarem juntos e ferirem os direitos de defesa. Poucos minutos depois do promotor Diego Luciani acusá-la de chefiar um esquema de associação ilícita e fraude ao Estado

Em um discurso em seu próprio gabinete no Senado, transmitido em redes sociais, Cristina acusou o Ministério Público de agir motivado por uma “feroz campanha política e midiática” e disse que a “a sentença já estava escrita” quando promotoria pediu sua condenação na segunda-feira. “Os promotores puderam ler seu roteiro durante nove dias. Eu gostaria de ter falado em frente ao tribunal”, disse Cristina. “Não deveria me surpreender, porque, como disse na época, a sentença já estava escrita”, acrescentou.

Durante o discurso, a vice-presidente argumentou que não há provas contra ela e que nenhum dos convocados para testemunhar durante o julgamento apoiou a versão dos promotores, que segundo ela adotam o “roteiro” de veículos de imprensa e da oposição ao governo.

Em uma publicação nas redes sociais na segunda-feira, Cristina já havia comparado o tribunal a um “pelotão de fuzilamento”. “Se faltou algo para confirmar que não estou perante um tribunal da Constituição, mas sim perante um pelotão de fuzilamento midiático-judicial, é me impedir de exercer o direito de defesa perante questionamentos que nunca apareceram na acusação do Ministério Público a que assisti por 5 dias em maio de 2019″, declarou.

As menções aos processos enfrentados por Lula na Operação Lava-Jato foram feitas pelos próprios apoiadores de Kirchner e membros do governo. “A extrema direita na América Latina é antidemocrática. O fizeram com Perón e, recentemente, com líderes populares da região como Evo Morales e Lula. Mas nossos povos são justos: não abandonam os que apostaram por eles”, escreveu o ministro das Relações Exteriores, Santiago Cafiero, em sua conta no Twitter.

Longe de significar uma prisão num futuro próximo, as acusações contra Kirchner aumentam a crise política de um país que precisa lidar com o caos econômico. Um sinal disso ficou evidente nesta segunda-feira, com manifestações pró e contra diante da residência dela em Buenos Aires – finalizadas com conflitos com a polícia.

Segundo Angelis, o caso Lula deve ser muito discutido na Argentina nos próximos meses e anos porque Kirchner acusa Diego Luciani de ter relações pessoais com o juiz Rodrígo Giménez Uriburu, um dos três magistrados que a julgará. Há alguns dias, uma imagem se espalhou mostrando os dois juntos em uma partida de futebol amador organizada pelo ex-presidente Mauricio Macri, adversário político de Kirchner. Ela pediu que os dois fossem afastados do processo, mas não obteve êxito.

“Seguramente, há alguns elementos que Cristina vai pôr na mesa para impugnar o processo, pelo menos a legitimidade dele”, declarou Angelis. “Por isso, creio que o caso Lula deve ser muito discutido e difundido na Argentina”.

O paralelo com o ex-presidente Lula acontece devido às alegações de ilegalidades feitas pela defesa do ex-presidente nos quatro processos criminais da Operação Lava Jato contra ele que tramitaram na 13ª Vara Federal de Curitiba, que resultaram na anulação das condenações no Supremo Tribunal Federal (STF) em 2021. Em um dos processos, referente ao caso do Triplex do Guarujá, a Segunda Turma do STF decidiu que o ex-juiz Sérgio Moro foi parcial no julgamento.

O petista, assim como Kirchner faz neste momento, mobilizou durante todo o processo os seus apoiadores a saírem em sua defesa difundindo a tese de perseguição.

Outra semelhança está nos direitos políticos. Caso seja condenada a sentença solicitada nesta segunda-feira, que pede 12 anos de prisão e anulação perpétua dos direitos políticos, Kirchner terá a sua carreira na política institucional, na qual ela foi presidente em dois mandatos, encerrada. “Foi o que aconteceu com Lula em 2018, quando perdeu os direitos políticos e não pode disputar as eleições que Jair Bolsonaro ganhou. Agora, ele pode. Creio que é uma discussão que também vai crescer na Argentina”, declarou Angelis.

Consequências políticas imediatas

Kirchner só deve ser julgada em dezembro por um tribunal da primeira instância e o caso deve ser apelado à Corte Superior do país, estendendo-se por anos. Por isso, o pedido de sentença feito nesta segunda-feira está longe de significar a prisão dela em um futuro próximo. A principal consequência é, segundo os analistas, o aumento da crise política em um país que lida com o caos econômico.

“Isso é um pouco mais do mesmo: o Kirchnerismo denuncia perseguição política, como está fazendo, e a oposição faz a campanha com o argumento da corrupção”, disse a cientista política María Lourdes Puente, diretora da Escola de Política e Governo da Universidade Católica Argentina.

“Não vejo que há um procedimento possível de detenção efetiva (com as acusações desta segunda-feira), somente uma agitação do vespeiro político”, acrescentou.

Manifestante se veste de presidiária para pedir prisão de Cristina Kirchner. Foto: Magali Druscovich/ REUTERS

A vice-presidente também se vale do foro privilegiado concedido pelo cargo para não ser presa. Com eleições marcadas para o ano que vem é provável que ela seja candidata ao Senado – o que manteria a imunidade até 2029, caso consiga a provável vitória. Nesse contexto, ela ainda teria que passar por um processo de impeachment no Congresso Nacional da Argentina para perder o cargo. E, para isso, seriam necessários dois terços dos votos dos senadores e deputados a favor da sua saída.

Dentro deste jogo, no qual há um conflito de anos entre a esquerda e a direita argentina, uma pergunta ainda sem resposta é como o governo de Alberto Fernandez vai lidar com as acusações – e como as acusações respingam nele. O atual presidente e Cristina racharam politicamente durante o governo e não se falam, mas isso não o impediu de também chamar as acusações contra ela de perseguição. “Transmito o meu mais profundo afeto e solidariedade a Cristina”, escreveu no Twitter,

Na avaliação de Carlos de Angelis, entretanto, a resposta é limitada. Por um lado, o governo não possui muitos recursos para defender Cristina em uma outra esfera de poder. Por outro, precisa centrar forças para lidar com a crise econômica, que atingiu 71% no ano, o pior número em 30 anos. “O governo está mais envolvido nos problemas econômicos na nova gestão de Sergio Massa”, declarou Angelis.

Resposta da oposição

Um fator é visto como crucial pelos analistas para livrar Alberto Fernández da pressão causada pelo processo de Cristina Kirchner: a resposta contida da oposição. De acordo com o analista político Sergio Berensztein, presidente da agência International Press Service (IPS) para América Latina, os políticos opositores não devem inflamar mais o cenário para não fortalecer a narrativa de perseguição de Cristina Kirchner. “Se a oposição usar as acusações contra Cristina, elas serão vistas como politizadas e parte dessa perseguição”, declarou Berensztein.

“O governo de Fernández está muito debilitado politicamente pela crise política. Fernández não tem credibilidade e está afastado de Cristina Kirchner, que tem uma liderança política muito forte. A crise econômica deve continuar sendo o maior motivo de pressão sobre ele neste momento”, acrescentou o analista.

A pressão poderia recair em Fernández caso Kirchner fosse condenada e recebesse um indulto político. Isso, entretanto, é improvável pelo tempo que o processo pode durar.

Segundo os analistas, isso não significa que as acusações não serão utilizadas politicamente contra Kirchner. Elas devem ser o tema central da campanha eleitoral no ano que vem, quando Cristina deve se candidatar ao Senado. “Eles vão usar, com certeza na campanha eleitoral vai ser uma questão central, por mais que não haja condenação firme para aquele momento”, concluiu Angelis.

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